Desinstitucionalização do Hospital Colônia Itapuã: de um portal sombrio a um solar iluminado

Em 2021, iniciou-se o processo de desinstitucionalização dos 43 moradores (37 pacientes de saúde mental e seis ex-hansenianos) do Hospital Colônia de Itapuã (HCI), conforme preconizado pela Política Nacional de Saúde Mental, regulamentada pela Lei da Reforma Psiquiátrica. Os moradores, majoritariamente, do sexo masculino, interagiam apenas com trabalhadores e curadoras, dentro do hospital. Lá, andarilhavam sem higiene pessoal, urinados, sem vestimentas adequadas, sem cuidado humanizado, previsto na legislação. Alterar esta lamentável realidade é o trabalho que vem sendo desempenhado por grupo que compõe o processo de desinstitucionalização. O Plano Terapêutico Singular (PTS) de cada morador, foi construído através da busca de informações com trabalhadores, curadoras, pesquisas em prontuários (no HCI e no Hospital Psiquiátrico São Pedro). Cada fonte trazia uma parte das histórias, de modo fragmentado, inconsistente, mostrando-se insuficiente para composição do “retrato” dos mesmos. O fundamental foi construir o processo junto ao sujeito, para quem, de fato, a desinstitucionalização está a serviço. Em outubro de 2022, foi inaugurado, em Viamão, o primeiro Serviço Residencial Terapêutico (SRT), previsto para concretização deste processo. A nova moradia contemplou 10 moradores. Esta experiência, não se trata apenas do processo de desinstitucionalização, mas de toda sensibilidade do trabalho, que possibilitou a estes sujeitos a retomada do protagonismo de suas próprias histórias.

Relatar os efeitos e prejuízos de uma institucionalização total, bem como as estratégias de reabilitação psicossocial, que foram utilizadas, e seu impacto na vivência e subjetividade dos moradores. Evidenciar que o cuidado humanizado, o olhar singularizado e o convívio diário, em uma residência terapêutica, transformam a realidade desses sujeitos. Compartilhar os impactos da produção de cuidado pautado nas tecnologias leves, na construção da subjetividade dos sujeitos. Relatar a experiência da desinstitucionalização, sob o prisma da humanização, do estímulo, do afeto, da reabilitação, com os moradores do SRT Solar, a nova morada que oferta o cuidado necessário, resgatando a dignidade da história de cada morador. A desinstitucionalização foi norteada pelo PTS. As equipes que desenvolvem esse trabalho são da Secretaria Estadual de Saúde, do HCI e do Núcleo de Desinstitucionalização, de Viamão, e contemplaram os desejos dos moradores, dando-lhes voz, através do acompanhamento terapêutico, das assembleias e das visitas realizadas à nova moradia. Questionados sobre seus desejos para o novo “(so)lar”, ouvimos desde “vontade de comer pastel”, até desejo de ‘ter uma mulher”. A organização da casa começou a ser pensada, a partir das solicitações e vínculos: quem seriam os companheiros de quartos; onde seriam colocados os carrinhos do J.; como se daria a comunicação com T.(deficiente auditivo) ou com o P.(autista). Nas visitas à casa, que estava em reforma, surgiram projeções, àquela que seria sua residência, evidenciando sentimento de apropriação, pertencimento e expectativa.
Para adaptação e singularidade na nova morada, roupas de uso comum, não fariam mais parte daquela realidade. A logística de identificação das vestimentas foi sugerida para que eles verificassem, mais facilmente, quais eram suas roupas: pedaços de tecidos coloridos foram bordados nas etiquetas, pois cada um tinha sua cor de referência. Nas gavetas, ao lado das camas, surgiram objetos pessoais, dignos de cada um daqueles indivíduos: perfume, rádio, desenho do Papai Noel. A medicação, que servia como contenção, controle e docilização dos corpos, foi ajustada, permitindo-lhes experimentar novas sensações.

A equipe reconheceu as necessidades de cada sujeito, com presença, tolerância, disponibilidade para escuta e diálogo. Esperar o tempo necessário das descobertas do percurso de cada um é executar a intropatia. Em curto período de convivência, transformações foram visíveis e positivas. Servem-se nos pratos, percebem saciedade, utilizam talheres. Interagem com comunidade, ampliando relações sociais e de afeto. Brincam, riem, genuinamente. Recebem visitas, passeiam. Palavras viraram frases. O T., que passava sentado no chão, hoje circula, com destreza pela casa. A gratidão com a equipe é vista no olhar e no abraço afetuoso, que enrola nossos cabelos e que, numa confusão de sentimentos, a mordida leve, também, é vista como um ato de amor.
O B., morador rechaçado pela família e pela instituição hospitalar, dado como malandro e calaceiro; demonstrou que pode ser muito gente boa e colaborativo com os demais. O J.V., hoje, senta à mesa e come de colher, demonstrando a relevância de conquista de muito empenho e esforço. O P., se afeiçoou à cachorra de estimação, para quem deu o primeiro sorriso; joga balão com a equipe; participou da busca aos ovos de Páscoa, com usuários do CAPS (pessoas que ele não conhece) e toma seu mate, ao final de tarde, na varanda da sua residência. Pertencimento é a palavra que define, hoje, este processo de desinstitucionalização. Eles, agora, são cidadãos de direito. Direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade. Pertencer é SER e isso basta.

A produção de cuidado, com ênfase em tecnologias leves, permite a construção efetiva e criativa de expressão da subjetividade, a partir do acolhimento, vínculo, autonomia e responsabilização, compreendidos nessa nova organização da assistência à saúde, suas práticas e relações terapêuticas. Sabemos que não basta derrubar os muros para acabar com os manicômios; é preciso interromper a lógica manicomial. E este trabalho é, sobretudo, uma aposta na transformação efetiva de vidas, por meio de intervenções de cuidado no cotidiano, e pela compreensão de que é possível produzir e experimentar processos de singularização. A ampliação de cuidado, a partir do olhar individualizado para cada morador, resgatando um lugar do sujeito como protagonista e cidadão, reafirma a vida em sua multiplicidade de significados e perspectivas. Por isso, também, reafirmamos que não caminhamos sós: é é imensa a potência e são inúmeras as possibilidades que se constituem com o fortalecimento de laços, nas redes e nos afetos. Por isso, salienta-se o êxito desse processo de desinstitucionalização, pois o resgate da singularidade, da subjetividade, dos desejos, da dignidade e da humanização levaram pessoas, que antes viviam às sombras, a um solar iluminado.

Principal

Vanessa Regina Bettiol de Oliveira

vanbetti@gmail.com

Supervisora da Saúde Mental

Coautores

Bruna Natel, Eliane Hochmuller, Katharina Krammer, Moacir Rohde Dornelles, Pamela Roesch, Rita Sheila da Silva, Renata Palmerim Schorn e Michele Galvão

A prática foi aplicada em

Viamão

Rio Grande do Sul

Sul

Esta prática está vinculada a

Av. Sen. Salgado Filho, 5412 - São Lucas, Viamão - RS, Brasil

Uma organização do tipo

Instituição Pública

Foi cadastrada por

Vanessa Regina Bettiol de Oliveira

Conta vinculada

16 mar 2024

CADASTRO

03 set 2024

ATUALIZAÇÃO

06 maio 2021

inicio

28 dez 2023

fim

Condição da prática

Andamento

Situação da Prática

Arquivos

TAGS

Práticas Relacionadas