Para reverter o cenário de destruição da ciência, uma das marcas do governo de Jair Bolsonaro, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) pode ter papel crucial. A empresa pública, ligada ao ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, com sede no Rio de Janeiro, administra o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Nas mãos do ex-presidente, o fundo foi transformado em balcão de repasses de verbas para o Congresso Nacional – que bancou seus crimes e evitou seu impeachment, dentro do mecanismo que ficou conhecido como orçamento secreto. O resultado conhecido foi o de retrocesso no financiamento de pesquisas científicas e o fenômeno conhecido como “fuga de cérebros” – quando cientistas deixam o país em busca de instituições que valorizem seu trabalho de fato.
Hoje, o ministério da Ciência busca reverter essa tendência. Julieta Palmeira Dantas, assessora da presidência da Finep e ex-presidente da Bahia Farma, a empresa pública de produção de medicamentos deste estado, conversou com Outra Saúde e explicou quais os planos da empresa para os próximos anos. Ele tratou de um tema central: o investimento em produção de vacinas como impulsionador inicial para o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) – e como uma retomada da política industrial pode ser decisiva para alavancar o desenvolvimento nacional.
“Faz tempo que a questão dos insumos para a saúde tem impacto na balança comercial”, explica ela. “O déficit da balança comercial do Brasil, ou seja, a diferença entre o importado e o exportado, já se mostra há algum tempo. Só que nos últimos anos virou uma coisa astronômica, como lembrou a ministra [Nísia Trindade]. Precisamos acabar com isso”, defende. Para ela, os gastos com importação poderiam ser direcionados ao uso de recursos na inovação – algo que influiria diretamente tanto nos determinantes sociais da saúde quanto na qualidade de vida da população.
Julieta se refere à declaração da ministra da Saúde, Nísia Trindade, que ao defender o desenvolvimento de vacinas nacionais mencionou que só em 2023 a dependência brasileira na área causou um prejuízo estimado em R$ 23 bilhões. E como ensinou a pandemia, a autonomia nacional na indústria da saúde é altamente estratégica. No caso brasileiro, torna-se caminho para o desenvolvimento nacional e também regional.
“Na Nova Política Industrial, como chamada pelo ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, uma questão importante é impulsionar o desenvolvimento regional”, anunciou Julieta. “Isso não quer dizer projetos regionalistas, mas é possível alocar certos investimentos de saúde em uma região. Por exemplo, a Hemobrás em Pernambuco: autonomia na produção de sangue e derivados é um projeto nacional, mas por sua base territorial impulsiona o desenvolvimento regional.”
Como afirmou Julieta, que é médica com longa trajetória de atuação sindical e no movimento de mulheres, o fomento à pesquisa científica não trata de questões que demoram a se manifestar na vida cotidiana e sequer são acessadas por parte da população. Trata-se, não só na produção de vacinas, de qualificar o SUS e ampliar o acesso a serviços mais complexos. Além disso, a redução do déficit em importações de insumos básicos, por si só, já permite aumentar o investimento em políticas públicas.
“De certa maneira, já tivemos tal experiência com a questão dos medicamentos antirretrovirais, para HIV e outras doenças. Todos têm acesso. Precisamos do mesmo em relação a diversas doenças, como por exemplo o câncer. Uma mulher não tem direito só ao rastreamento e diagnóstico precoce, mas também ao tratamento mais avançado, para que essa vida possa ser efetivamente resgatada, e com qualidade. Essa é a perspectiva quando falamos no CEIS.”
Julieta não deixou de lado a fuga de cérebros produzida pelo abandono da ciência no país e afirma que recuperar profissionais brasileiros está no horizonte da atuação do MCTI. Como explica, já há iniciativas nesse sentido, como abertura de concurso após mais de 10 anos e destinação de verbas a institutos das áreas de física, astronomia, entre outras.
“Não podemos ver a nova política industrial somente como aquela coisa que vai fazer uma fábrica em algum lugar. É toda uma rede que envolve pesquisa, produção de conhecimento. A desindustrialização do nosso país foi simultânea à perda das referências da ciência, com um grande número de cérebros que foram pra fora por falta de apoio. Queremos mudar isso. Aqui, a ministra Luciana Santos tomou medidas decisivas, como aumentar a bolsa do CNPQ em 94%”, destacou.
Leia a entrevista completa.
O que comenta do investimento da Finep de cerca de R$ 10 milhões na pesquisa de vacinas contra algumas doenças – como chicungunha , dengue e malária – até o fim do ano?
É uma função da Finep financiar a inovação, principalmente voltada à busca do acesso à saúde da população. O próprio presidente da Finep disse isso quando explicou que a prioridade da ministra Luciana Santos é a questão da saúde e do entendimento do próprio Complexo Econômico Industrial da Saúde. É um fato relevante que até a metade deste ano já utilizamos o dobro dos recursos em relação a 2022, somente na área de pesquisa em vacina.
Nosso país viveu uma experiência recente em relação a vacinas e acesso à saúde, mas é muito importante ter uma visão de que, de janeiro pra cá, há uma disposição da própria FINEP de cobrir a decisão da ministra e do próprio governo de apostar nas vacinas e na imunização da população, em doenças como as citadas e outras, até com impacto internacional.
Uma outra questão deste investimento é a busca de uma produção nacional das vacinas. Nós temos grandes polos de produção da vacina, como Rio, São Paulo e Santa Catarina, mas investimento numa vacina totalmente brasileira é algo muito importante. Obviamente, não vamos arriscar a vida da população em função disso, pra responder uma polêmica recente sobre a questão da vacina da dengue, que tem uma vacina aprovada do laboratório japonês Takeda.
A Finep, em sintonia com isso, contribui com ações em diversos estados, como Minas Gerais também. Na nova política industrial, como chamada pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), uma questão importante é impulsionar o desenvolvimento regional. Isso não quer dizer projetos regionalistas, mas é possível alocar certos investimentos de saúde em uma região.
O que isso representa em termos de visão estratégica?
Por exemplo, a Hemobrás em Pernambuco: autonomia na produção de sangue e derivados é um projeto nacional, mas por sua base territorial impulsiona o desenvolvimento regional.
Por sua vez, o FNDCT foi restabelecido, revigorado com mais recursos, uma grande vitória do ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, a partir da qual o Finep pode aportar recursos do FNDCT, que podem proporcionar investimentos na área de inovação e saúde especificamente, a exemplo das vacinas.
Portanto, eu vejo grandes perspectivas, não só sobre tais vacinas, que terão impacto grande. Mas vejo benefícios à população em inovação e desenvolvimento tecnológico, que na área da saúde têm um sentido de democratização, pois pode acabar com a vulnerabilidade do SUS e ao mesmo tempo permitir o acesso à saúde pela população.
Assim, vejo com bons olhos o esforço da Finep para a questão de cobrir iniciativas voltadas à inovação, que é a sua função. E não vejo a inovação como algo referente a coisas que não serão usadas pela população. É óbvio que há inovações cujo acesso ainda vai demorar um pouco, mas só tem sentido na medida em que represente um envolvimento da população. No caso das vacinas o impacto é imediato, a própria independência do país neste âmbito tem um impacto imediato na saúde da população, não falamos de algo distante.
A ministra da Saúde afirmou que a dependência externa em insumos de saúde causou R$ 23 bilhões de prejuízo ao país. Diante disso, podemos concluir que a prioridade para este tipo de investimento científico patina no Brasil e não temos a devida dimensão de seus benefícios?
Exatamente. No caso do Fundo Nacional de Desenvolvimento de Ciência e Tecnologia é um verdadeiro absurdo reduzi-lo como nos últimos anos. Mas agora temos uma retomada, a ciência voltou. É a ideia de valorizar a ciência porque ela tem um impacto na vida da população, dos povos de um modo geral. Portanto, a questão da dependência externa precisa ser abordada. Devemos buscar desenvolvimento sustentável e ao mesmo tempo diminuir essa dependência.
Faz tempo que a questão dos insumos para a saúde tem impacto na balança comercial. O déficit da balança comercial do Brasil, ou seja, a diferença entre o importado e o exportado, já se mostra há algum tempo. Só que nos últimos anos virou uma coisa astronômica, como lembrou a ministra. Precisamos acabar com isso. Se gastamos com importação de insumos é claro que impacta no desenvolvimento do país, pois se poderia usar tais recursos na inovação e em outros projetos que tocam em determinantes sociais da saúde, na qualidade de vida da população. Não dá pra continuar assim. É preciso tomar consciência de que a política de importar tudo impacta muito na economia do país.
Por isso elogio os novos parâmetros da política industrial, pois coloca o enfrentamento da dependência externa. Aqui, destaco outra prioridade da Finep, na qual estou mais envolvida, que é a de contribuir com o Complexo Econômico Industrial da Saúde. Estaremos ao lado de outros ministérios no G6, um grupo executivo que definirá as prioridades, em acordo com a própria Finep e o ministério, tanto em termos de recursos reembolsáveis como não reembolsáveis, para o desenvolvimento do CEIS, um marco nesse novo governo.
Claro que tem outros, como o complexo econômico da defesa, a envolver outras tecnologias, aeronáutica, produção de aviões, área digital. Mas estamos tratando aqui da área da saúde, onde vejo uma solidificação e o desenvolvimento do complexo econômico industrial representa muito para o desenvolvimento do país e o SUS. A ideia, como anunciado, é atender 70% das demandas do SUS com produção nacional até 2026. É um desafio e tanto, e nas vacinas vemos mais possibilidade de alcançar tal objetivo. Mas nos demais insumos, equipamentos, é um grande desafio e eu admiro mais ainda a ministra Nísia Trindade por vê-la colocar esse desafio para atender o SUS, a fim de garantir tanto o desenvolvimento como a diminuição da dependência externa, sem esquecer o acesso à Saúde, dentro dos princípios do SUS de universalidade e integralidade.
É muito importante as pessoas entenderem que o SUS não é só o básico. É um sistema nacional unificado. Tem de atender o básico e permitir o acesso, em especial das pessoas em vulnerabilidade, ao que existe de melhor em relação ao desenvolvimento tecnológico em questões como tratamento do câncer ou outras doenças, incluindo as doenças negligenciadas, como é função do SUS, as doenças raras, coisas que a iniciativa privada não prioriza. Devemos ver as coisas dessa maneira, de forma que as novas tecnologias sejam incorporadas e permitam a garantia de seu caráter público, gratuito, de qualidade para atender a população. Isso é o direito à saúde.
Como dito, você tem uma função também voltada ao desenvolvimento do Complexo Econômico Industrial de Saúde. Quais os objetivos mais diretos do Finep e do ministério comandado por Luciana Santos nesse sentido?
O CEIS aborda dois elementos fundamentais: 1) é vital para o desenvolvimento do país, um desenvolvimento autônomo, independente, capaz de enfrentar problemas da dependência externa na área de insumos da saúde; 2) ele qualifica mais ainda o SUS, ou seja, permite que a partir da ruptura com a dependência externa possamos ampliar o acesso à saúde.
De certa maneira, já tivemos tal experiência com a questão dos medicamentos antirretrovirais, para HIV e outras doenças. Todo mundo tem acesso. Precisamos do mesmo em relação a diversas doenças, como por exemplo o câncer. Uma mulher não tem direito só ao rastreamento e diagnóstico precoce, mas também ao tratamento mais avançado, para que essa vida possa ser efetivamente resgatada, e com qualidade. Essa é a perspectiva quando falamos no CEIS.
Há um terceiro elemento, que é o desenvolvimento regional. Existem os laboratórios públicos de produção de medicamentos, que precisam ser valorizados. Já fui presidenta da Bahia Farma, a indústria pública de medicamentos da Bahia, entre 2015 e 2017. Precisamos tanto da perspectiva de incorporar tecnologia, envolvendo estrangeiros, entes públicos ou a iniciativa privada nacional. Pode ser algo tripartite, que incorpore tecnologia. É preciso também apostar na inovação, na incorporação de tecnologia a partir das Parcerias de Desenvolvimento Produtivo, que chamamos de PDP, conceito que devemos muito a Carlos Gadelha, responsável por idealizar essa forma de parceria sob o critério de que não basta ser parceiro pra envelopar ou encaixar o medicamento; é preciso também incorporar a tecnologia vinda de fora, tanto nos laboratórios públicos como na indústria privada brasileira. De toda forma, é preciso ter incorporação de tecnologia.
Outro braço é o da aposta em pesquisa, nos institutos de pesquisa das universidades e iniciativas com laboratórios públicos e laboratórios da indústria farmacêutica privada para o desenvolvimento da inovação aqui no Brasil. Afinal, pode-se incorporar algo e logo vê-lo ser ultrapassado, porque é um mundo onde novas questões surgem com uma grande velocidade. Por isso é preciso tanto incorporar tecnologia, ser um braço do CEIS, como impulsionar o desenvolvimento da inovação e da pesquisa no Brasil.
Devemos fazer isso com o que já existe, mas também conectar com o próprio desenvolvimento regional. Não podemos apostar nos mesmos polos de produção e de inovação, devemos diversificar mais Brasil afora, no Nordeste e no Norte, com projetos nacionais que interfiram decisivamente no desenvolvimento regional.
Há uma análise sobre a chamada fuga de cérebros vista nos últimos anos? O que se pode fazer frente a isso?
Ainda estamos em processo de discussão da nova política industrial e também do desenvolvimento brasileiro, onde se insere a retomada e valorização de muitas pessoas que saíram do país. Precisamos incentivá-las a retornar ao país, dar condições de trabalho etc. Existe intenção de superar essa fuga de cérebros, tanto sob ponto de vista da FINEP, do próprio Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, como também da política industrial do MDIC.
Não podemos ver a nova política industrial somente como aquela coisa que vai fazer uma fábrica em algum lugar. É toda uma rede que envolve pesquisa, produção de conhecimento. A desindustrialização do nosso país foi simultânea à perda das referências da ciência, com um grande número de cérebros que foram pra fora por falta de apoio. Queremos mudar isso. Aqui, a ministra Luciana Santos tomou medidas decisivas, como aumentar a bolsa do CNPQ em 94%. Outro fato recente foi a reunião de institutos e fundações vinculados ao Ministério, como o Centro de Tecnologia do Nordeste, Observatório Nacional,Museu de Astronomia, Instituto Nacional de Pesquisas do Pantanal, Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia.
Abrimos concurso para pesquisadores e analistas com 814 vagas, o maior concurso na área em 10 anos. Numa reunião recente os representantes desses órgãos saíram muito animados, já que passaram um perrengue muito grande em relação à falta de equipe. Tem um telescópio em MG, cujo impacto é grande no estudo das estrelas, é parte de inovação, só pra dar um exemplo, tem outras áreas, a própria Fiocruz, são institutos importantes, vinculados aos ministérios da Saúde ou da Ciência e Tecnologia.
Essa decisão, por um lado, contribui com os pesquisadores ao aumentar as bolsas de pesquisa e por outro cuida da equipe de pesquisadores e analistas desses centros. Por fim, queremos impulsionar a rede de pesquisa e inovação em todo país a partir de destinação de recursos para a infraestrutura em si dos institutos. Foram destinados R$ 54 milhões via Finep para esses institutos para começar o processo.
É muito importante o que está acontecendo e quando se diz que a ciência voltou. No caso da saúde, deve significar impacto imediato na vida das pessoas. E também em possíveis emergências futuras. A pandemia acabou, mas precisamos de uma perspectiva de uma infraestrutura que possa enfrentar circunstâncias parecidas e emergências futuras na área da saúde. Nós não podemos viver novamente a situação em que ficamos com a covid-19, dependendo do exterior, desde vacinas a ventiladores.
Por tudo isso devemos muito valorizar as nossas pesquisadoras e pesquisadores no campo da inovação e saúde e ao mesmo tempo entender e enfrentar a dependência externa.
Por Gabriel Brito*, artigo originalmente publicado no site OutraSaúde.