Quinta Conferência de Saúde Mental, um grande passo à frente com um passo atrás?

Paulo Amarante conta sua história e analisa suas inovações e insuficiências

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Participação de 2.200 pessoas e mais de 600 propostas aprovadas ao fim da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental / Foto: Ascom CNS

O professor e pesquisador sênior da Fiocruz, Paulo Amarante, presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e, também, curador de saúde da Comunidade de Práticas de Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Plataforma IdeiaSUS Fiocruz, escreveu um relato para o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz) sobre a 5a Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada de 11 a 14 de dezembro de 2023. Ele também faz um breve retrospecto das conferências realizadas anteriormente.

Confira a seguir o texto na íntegra, publicado originalmente no portal CEE-Fiocruz, em 31/1/2024.

Enfim! Podemos encher o peito e gritar em alto e bom som: realizamos a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental! Antes de tudo é importante registrar que o acontecimento – realizado de 11 a 14 de dezembro de 2023 – é resultado do compromisso, da persistência e da legitimidade do Conselho Nacional de Saúde. Foi um longo tempo de trabalho e de lutas numa das mais difíceis conjunturas da história da República brasileira.

Isso não significa dizer que as conferências anteriores tenham sido muito fáceis de serem realizadas. A primeira só ocorreu um ano após a 8ª Conferência Nacional de Saúde ter aprovado sua realização na plenária final, assim como outras conferências temáticas. Como se sabe, a Oitava ocorreu em março de 1986, no bojo da Nova República, tendo à frente do governo o presidente Sarney e na presidência da conferência o sanitarista e presidente da Fiocruz Sergio Arouca.  Como o momento era de refundação da democracia, a conferência teve um temário mais geral, voltado para a definição das bases estruturais da política nacional de saúde como um todo, o que se configuraria no SUS, sem entrar em questões de setores específicos.

Desta forma, na plenária final, foram aprovadas moções que reivindicavam a realização de conferências temáticas. As demais conferências foram realizadas logo na sequência, com exceção da de saúde mental, na medida em que a gestão da Divisão Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde era contrária à sua realização. A resistência ficava por conta do não compartilhamento dos princípios antimanicomiais, que já prevaleciam no movimento da Reforma Psiquiátrica. Foi necessário, estrategicamente, que alguns coordenadores estaduais de saúde mental começassem a convocar conferências estaduais para criar um fato político e assim provocar a convocação da etapa nacional.  Assim, a I Conferência Nacional de Saúde Mental foi realizada em 1987, um ano após ter sido aprovada, e, poucos sabem da particularidade de que foi realizada no Rio de Janeiro, e não em Brasília, como ocorre com todas as conferências (com exceção das de saúde indígena, que são realizadas em seus próprios territórios). A iniciativa de realizá-la no Rio, e não em Brasília, fazia parte de uma estratégia de esvaziamento da participação social. E, com o mesmo propósito, foi convocada como uma espécie de congresso de saúde mental e não de uma conferência nas bases da participação e controle social, conforme inspiração da Oitava.  Foi preciso que o movimento virasse a mesa, literalmente, para que a conferência deixasse de ser um congresso de especialistas e passasse a ser um espaço de debates e construção da política nacional de saúde mental.

A segunda conferência, realizada no final de 1992, cinco anos após a primeira, e agora no governo Collor-Itamar, teve também os seus problemas. Em primeiro lugar, não aceitou a participação dos membros eleitos na plenária final da primeira conferência para comporem a comissão organizadora. Em segundo lugar, embora com uma intenção louvável de estimular a participação dos usuários, operou uma redução dessa concepção como sendo exclusivo para as pessoas com diagnósticos de transtornos mentais. Mesmo não sendo a intenção, restringiu o protagonismo de outros atores sociais que, no sentido geral das leis 8.080 e 8.142, consideram como usuários todos aqueles que utilizam o SUS, portanto o conjunto da sociedade brasileira.

A terceira conferência, embora só realizada quase dez anos depois, marcou história em uma conjuntura bastante favorável. 2001 foi o ano da aprovação da lei 10.216 (que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental), após quase 12 anos de luta. Sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 06 de abril, criou muitas expectativas e fortaleceu o movimento antimanicomial que, nesse mesmo ano, realizou o histórico 5º Encontro Nacional da Luta Antimanicomial em Miguel Pereira, no Rio de Janeiro.  O filme Bicho de 7 cabeças, dirigido por Laís Bodansky e estrelado por Rodrigo Santoro e um elenco de peso, havia sido lançado no finalzinho do ano anterior e, em 2001, chegava ao grande público. Com roteiro de Luís Bolognesi, o filme tinha como inspiração o livro Canto dos Malditos, de Austregésilo Carrano, narrando situações de violência que o próprio autor havia vivido em manicômios brasileiros. O impacto causado na sociedade brasileira, especialmente entre os usuários de saúde mental é inenarrável. Não há dúvidas de que o impacto causado pelo filme contribuiu para a aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica.

O clima de entusiasmo, expetativa, efervescência de então poderia ser comprovado pelo calor dos debates da plenária final da conferência, que durou mais de 23 horas! Faltou pouco para que a plenária completasse um dia inteiro de debates!

Mas o vigor do movimento social em favor da Reforma Psiquiátrica, exercitado neste ano de 2001 e nos subsequentes, não seria suficiente para que o governo democrático popular, que assumiria logo depois, convocasse a 4ª Conferência. Somente após uma ampla mobilização conseguiu realizar a histórica Marcha dos Usuários pela Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, no dia 30 de setembro de 2009, em Brasília, da qual participaram cerca de 3.000 ativistas de todo o país. Mesmo assim, a 4ª Conferência só viria a ocorrer em dezembro de 2010, ou seja, no último mês do último ano do segundo mandato do presidente Lula.

Apesar de ter sido convocada com a adjetivação de intersetorial, na verdade, foi mais interministerial que intersetorial, já que os participantes dos setores que não os da Saúde eram particularmente gestores públicos. Os participantes de movimentos sociais de outros setores não tiveram o espaço que lhes seria devido. Mas, de qualquer forma, a chamada da conferência incorporou a questão da intersetorialidade, que é fundamental para o campo da saúde mental. Não basta fechar manicômios e abrir serviços territoriais de saúde mental se as políticas públicas não alcançarem outros setores (educação, cultura, habitação, trabalho, esportes, segurança, previdência e seguridade social e assim por diante).

Enfim, chegamos à 5ª Conferência : treze anos depois da anterior. A expectativa da sociedade brasileira é a de que as conferências fossem convocadas logo no início de cada gestão de governo. E não apenas para ouvir a sociedade, suas expectativas, seus projetos, mas para construir um pacto de atuação conjunta, um fazer junto. Sergio Arouca insistia que os espaços de conferências e conselhos eram para envolver a comunidade no fazer junto e não para ouvi-la e depois voltar para os gabinetes para executar as políticas. Em 2014, na plenária de encerramento do 4º Congresso Brasileiro de Saúde Mental da Abrasme (Associação Brasileira de Saúde Mental), em Manaus, foi lançada a campanha pela convocação da 5ª, mas os clamores não tiveram efeito.

Mas, chegamos à Quinta, em dezembro de 2023! E não custa dizer que esta edição traz um elemento diferencial promissor. Em prosseguimento às inovações surgidas na 17ª Conferência Nacional de Saúde, deu um solavanco no processo de participação convencional das etapas locais, municipais e estaduais até chegar à etapa nacional. O advento das conferências temáticas livres – e foram 37 ao todo –, deu um chá de ânimo, uma nova energia, um sangue novo e diversificado no (um tanto institucionalizado) processo de escolha de delegados do modelo anterior. Uma inciativa que, sem dúvida, renovou o processo democrático ao propiciar o ingresso de segmentos da diversidade cultural, social e política (população negra, população das periferias, população em situação de rua, idosos, LGBTQIAPN+, povos da floresta, povos indígenas, população do campo, pessoas com deficiência, as várias lutas identitárias e tantos outros que foram incluídos a partir da existência das conferências livres). A Quinta iniciou um processo instituinte: um grande passo à frente!

Mas a confluência dos temas trazidos por esses novos segmentos da diversidade não deveria levar a abrir mão de pensar e atuar explicitamente nos outros setores das políticas públicas, tanto no âmbito do aparelho de Estado quanto da sociedade civil. A mesa de abertura, em que pese a brilhante apresentação do Coral Cênico Cidadãos Cantantes e a força da representatividade institucional, deixou clara a composição quase que exclusivamente centrada em atores do setor Saúde, mais especificamente em gestores. Não há como deixar de lado o setor da educação, num momento em que a patologização da infância segue um curso preocupante, entre outras questões inerentes ao setor na interface com a saúde mental. Da mesma forma que não há como deixar de lado a cultura, pois as inciativas culturais têm sido estratégias de cuidado e de inclusão social fundamentais, que abrem perspectivas de ressignificação das pessoas patologizadas e institucionalizadas. Não há como deixar de fora o setor do trabalho, na medida em que é necessário construir possibilidades de trabalho, geração de renda e economia solidária para pessoas em condições diversas de existência, às quais o mundo capitalista, produtivista, capacitista, elitista, e tantas coisas mais, não permite o ingresso. E assim por diante, nas questões relacionadas à diversidade racial e de gênero, entre outras.

Aquelas pessoas que estavam nas instituições denominadas por Michel Foucault de a grande internação, são as mesmas que ainda estão nos manicômios, nas fraudulentas comunidades terapêuticas, nos cárceres, nas favelas, nas cracolândias, nas deploráveis situações de rua! São os miseráveis, desfiliados, como os denominou Robert Castel, ou os ninguéns, que nas palavras de Eduardo Galeano, custam menos do que a bala que os mata.

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