Detectar a hanseníase: desafio brasileiro

País tem segundo maior número de casos da doença no mundo. Além de ver diagnósticos subirem nos últimos anos, segue com entraves de detecção tardia

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Em Pilar: ação de promoção da saúde com foco na hanseníase. Foto: IdeiaSUS Fiocruz

Doença crônica contagiosa, a hanseníase segue afetando brasileiros em um ritmo de quase 20 mil casos por ano – e o registro de novos diagnósticos aumentou em 5% no ano passado, de acordo com o Painel de Monitoramento de Indicadores da Hanseníase. Os números levam o Brasil a ser o segundo país com maior incidência da doença no mundo, atrás apenas da Índia, e a ser responsável por 96,3% dos casos nas Américas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Apesar de possuir tratamento e mesmo cura conhecida, a enfermidade causada pelo microorganismo Mycobacterium leprae segue sendo uma doença negligenciada: no atual estágio de sua situação epidemiológica, já não parece ser uma prioridade para atores públicos e privados da Saúde a erradicação de sua presença. Nesse contexto, as autoridades sanitárias lidam ainda com dificuldades na detecção dos casos da hanseníase, por razões que vão de sua maior incidência em regiões mais afastadas e pobres ao estigma histórico contra os infectados.

Dois artigos publicados na edição de janeiro dos Cadernos de Saúde Pública, periódico científico da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), traçam um ilustrativo quadro dos desafios para detectar e tratar a hanseníase no Brasil. Apresenta-se o exemplo da cidade de Arapiraca, um polo regional no interior de Alagoas que é área endêmica da doença, para discutir em profundidade os fatores que se associam ao atraso nos diagnósticos, que podem trazer consequências graves para os pacientes e mesmo a morte.

Em particular, uma das pesquisas debate a eficácia de uma instigante novidade em implementação pelo Ministério da Saúde: um algoritmo de exames e testes que pode melhorar a custo-efetividade e acelerar a detecção da hanseníase – e, com isso, apoiar os esforços do Sistema Único de Saúde (SUS) para reduzir ao máximo os casos não-diagnosticados e os atrasos na detecção.

O caso de Alagoas

Localizada no agreste alagoano, Arapiraca tem uma população de mais de 230 mil pessoas e convive com uma taxa de 10.7 casos de hanseníase a cada 100 mil habitantes, com uma incidência de 20% do grau 2 da doença (lesões graves e visíveis nos olhos, mãos e pés) entre os novos diagnósticos. Tais dados levaram o poder público a considerá-la uma região de alta endemicidade e a instalar ali o Centro de Referência Integrado de Arapiraca (CRIA), equipamento administrado pela prefeitura e que atende de forma especializada os acometidos pela hanseníase.

A equipe de pesquisadores responsável pelo artigo Fatores associados ao atraso no diagnóstico da hanseníase em área endêmica no Nordeste do Brasil: um estudo transversal, composta por estudiosos da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e da Liverpool School of Tropical Medicine, esteve em diálogo com todos os pacientes de hanseníase que passaram por tratamento no CRIA entre novembro de 2021 e junho de 2022 para entender os motivos pelos quais demoraram a buscar os serviços de saúde – e, depois que os procuraram, por que não receberam o diagnóstico correto.

“O diagnóstico precoce da hanseníase é importante para quebrar a cadeia de transmissão”, diz o estudo, assinado por Glycia Monaly Claudino dos Santos (UFS), Rachel L. Byrne (LSTM), Ana Isabel Cubas Atienzar(LSTM) e Victor Santana Santos (UFS). Sem ele, a doença pode causar “danos irreversíveis no sistema nervoso, lesões e deficiências físicas”, eles explicam.

Contudo, sua investigação descobriu que a demora na identificação da enfermidade é bastante comum. 45,8% dos pacientes não buscaram ajuda ao perceberem seus primeiros sintomas. Quando buscaram, um quarto recebeu diagnóstico errôneo no momento inicial: destes, sete a cada dez ouviram ter problemas dermatológicos. 10% precisaram passar por quatro ou mais consultas antes de a hanseníase ser confirmada. Os estudiosos calculam que, em média, os pacientes demoram 3 meses para procurar os serviços de saúde e mais 10 meses se passam antes do diagnóstico definitivo – tempo que seria precioso para o tratamento.

”Um quarto dos participantes de nosso estudo receberam diagnóstico e tratamento errados”, frisam os pesquisadores, e “isso mostra que muitos profissionais de saúde nem mesmo consideram a hanseníase como um possível diagnóstico, mesmo em áreas endêmicas”. Em seu artigo, eles propõem que “é necessário organizar uma maior conscientização”, com o objetivo de “prevenir o sofrimento dos afetados e reduzir o potencial de transmissão comunitária” da doença.

Apesar de se concentrar em uma situação específica do interior do Nordeste, o trabalho dos cientistas da UFS e da LSTM ajuda a entender fatores centrais que dificultam o combate à hanseníase – e porque a aceleração dos diagnósticos deve ser uma prioridade no planejamento dessa luta.

Algoritmos pela vida

Enfrentando esse impasse, o MS recentemente decidiu incorporar ao SUS um novo algoritmo de diagnóstico da hanseníase. Até aqui, buscava-se detectá-la basicamente com exames clínicos da pele dos pacientes, complementando-os em alguns casos com exames de microscópio. Contudo, “tais testes possuem baixa sensibilidade, e até 70% dos indivíduos infectados apresentam resultado negativo”, atrasando – ou mesmo impedindo – a identificação e o tratamento da doença.

Na nova proposta do Ministério, somam-se exames sorológicos rápidos e testes PCR às práticas já em voga. Essas técnicas têm boa precisão e são menos invasivas e desconfortáveis que a microscopia, avaliam os pesquisadores. O mais recente documento de Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas da hanseníase, publicado há menos de dois anos pelo MS, já as indica.

No artigo Análise de custo-efetividade de um novo algoritmo para exame sequencial de hanseníase baseado em testes fabricados sob a perspectiva do SUS, uma equipe composta por pesquisadores do Instituto Nacional de Cardiologia (INC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia Jamil Haddad (INTO), da Universidade de Brasília (UnB) e da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde avaliou o quão adequada é a nova diretriz.

Os resultados da pesquisa apontam que “a despeito de seu custo mais alto”, ligado à adição de mais testes à rotina, “a estratégia [adotada pelo MS] reduz o número de casos não diagnosticados (uma redução de 61% no risco relativo)”. A nível indireto, é possível supor – frise-se, uma suposição – que, ao reduzir os diagnósticos tardios, os custos mais altos de testagem poderão ser equilibrados a longo prazo com reduções expressivas nos gastos com pacientes em situação grave.

Por isso, os estudiosos afirmam que “nossa análise econômica corrobora a decisão do Ministério da Saúde de recomendar o novo algoritmo de diagnóstico. Ela sugere que a combinação [da análise de] testes sorológicos rápidos, microscopia e testes PCR tem melhor custo-benefício que o procedimento rotineiramente empregado no Brasil, restrito à microscopia. O uso sequencial desses exames diminui o número de falsos negativos a um custo relativamente baixo”.

Apesar disso, os autores ressaltam que o avanço técnico não pode vir descolado da preparação de pessoal. Eles recomendam que “os profissionais de saúde que trabalham nos equipamentos de atenção primária e nas Equipes de Saúde da Família devem ser preparados para reconhecer os sinais precoces da hanseníase, diagnosticá-la e recomendar medidas adequadas de controle e tratamento para os pacientes”.

Alcançar a meta proposta pela OMS na Global Leprosy Strategy 2021-2030, que prevê zerar ou reduzir em pelo menos 70% as novas infecções por Mycobacterium leprae no mundo até o fim da década, pode não ser uma empreitada simples para o Brasil, que ainda registra grande número de casos e sofre com a subnotificação.

Como afirmam os pesquisadores responsáveis pelo estudo em Arapiraca, “enfrentar esses fatores exigirá um esforço coordenado entre profissionais de saúde, governos e outros atores para fortalecer o sistema de saúde e assegurar diagnósticos no momento certo para a hanseníase, especialmente nas áreas endêmicas do Brasil”. Mas o êxito poderá ser decisivo para a vida e o bem-estar de milhares de brasileiros – e uma vitória para a Saúde Pública do Brasil.

Por Guilherme Arruda, reportagem publicada originalmente no site Outra Saúde, em 19/1/2024 (atualizada em 2/2/2024).

+ Saiba ainda

Na Plataforma IdeiaSUS Fiocruz, você encontra experiências de combate à hanseníase, a exemplo de Identificação de clusters e treinamento em serviço: estratégias para abordagem da hanseníase no município de Pilar (AL) – clique sobre o título para acesso à integra da prática. O projeto do município alagoano surgiu da necessidade de se compreender a dinâmica da hanseníase por meio de dados epidemiológicos. Por esta razão, o município chegou ao denominado “cluster”, que nada mais é do que uma área considerada de risco para a doença, permitindo uma análise fiel das ações de controle, bem como o diagnóstico precoce. Trata-se de um trabalho inovador que busca enfrentar uma doença ainda negligenciada no Brasil.  A prática de Pilar mostra a importância da articulação entre as áreas de Vigilância em Saúde e Atenção Primária à Saúde. Ela foi durante o ano de 2023 acompanhada pela equipe da curadoria em saúde da IdeiaSUS, que tem como propósito a sistematização da experiência, com posterior registro em livro e vídeo, e pauta um dos primeiros episódios da série Vozes da Saúde, as experiências da IdeiaSUS, disponível no canal da plataforma no Youtube.

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