Grupo Escurecendo Ideias: no Centro de Atenção Psicossocial infantojuvenil, o poder é preto

Ainda persiste o desafio enfrentado pelo campo da Saúde Mental na Infância e Adolescência no Brasil, evidenciado pela escassez de Políticas Públicas e pela falta de recursos financeiros adequados para o cuidado e assistência a essa faixa etária. O cenário contraria os expressivos índices já demarcados pela OMS e UNICEF, que indicaram um aumento significativo de crianças e adolescentes com quadros associados a algum tipo de sofrimento psíquico de 2019 a 2023. Essa preocupação torna-se ainda mais evidente quando se analisa o indicador de raça, revelando um quadro alarmante da saúde mental infantojuvenil negra no país. A análise desse cenário ainda demanda a consideração dos determinantes sociais de saúde, que estão intrinsecamente associados aos agravos em saúde e são de difícil acesso para essa população. Em consequência, observamos a correlação entre o racismo e o sofrimento psíquico. Em 2021, após uma abordagem truculenta pela polícia a um adolescente preto do CAPS 2 infantojuvenil de Santo André (SP), em plena luz do dia, na presença da equipe e outros adolescentes, sob justificativa que eles se encontrava de moletom, o debate sobre o racismo ressurgiu de forma contundente na equipe. Esse incidente evidenciou a escassez de diretrizes no campo da Política Pública em Saúde Mentais relacionadas a esse tema. Os profissionais pretos, que já haviam vivenciado experiências semelhantes, perceberam a necessidade de estabelecer um espaço psicossocial voltado para o debate, escuta, acolhimento, empoderamento, resgate de história e cultura africana, bem como orientações específicas para os adolescentes negros inseridos no serviço, o que levaria a criação do Grupo Terapêutico Escurecendo Ideias. O grupo se reúne a cada quinze dias no CAPS 2 infantojuvenil, podendo também ocorrer em locais dentro do território de circulação e vivência dos usuários. Ou ainda, pode ser realizado em pontos culturais e artísticos como museu, parques, praças, dentre outros locais elencados pelos participantes. Os familiares e responsáveis são participantes ativos, compreendendo que, em sua maioria, atravessaram e/ou atravessam as mesmas questões de suas crianças e adolescentes. O trabalho é exclusivamente conduzido por profissionais pretos do serviço, o que garante de imediato identidade e representatividade para os participantes. Durante os encontros, são explorados temas relacionados à história e cultura africanas, utilizando diversas formas de expressão, como discussões sobre o cotidiano, atividades no território, exibição e análise de filmes, vídeos e literatura do povo preto. Algumas atividades visam promover uma ressignificação a partir do espelho, na busca de ressaltar a beleza e fortalecer a autoestima, como as atividades pontuais das oficinas de cabelo e maquiagem, nas quais se coloca em destaque as tranças e o cabelo black power como expressões poderosas da identidade e da estética afrodescendente. Há ainda, a participação de convidados que compartilham história e experiências. Este processo proporciona trocas e diálogos sobre as vivências diárias.

No campo da saúde mental, a urgência em abordar a pauta do racismo é incontestável, dada a complexidade das questões envolvidas. A realidade da população preta é marcada por violência e desigualdades múltiplas, estigmas e preconceitos que reverberam diretamente em questões do sofrimento psíquico. Experiências de discriminação e preconceito podem desencadear quadros de estresse, ansiedade, depressão, ideação suicida e abuso de drogas (lícitas e ilícitas). Ignorar este cenário implica em desassistir esta população, não oferecendo suporte adequado para o cuidado. Quando se trata de crianças e adolescentes, o racismo pode ter impacto significativo no desenvolvimento psicológico, emocional e das habilidades sociais, proporcionando consequências negativas e distorções na imagem e autoestima, perdurando por anos. O Grupo Escurecendo Ideias tem como objetivo criar um ambiente, a partir das diretrizes do modelo de atenção psicossocial e dos direitos humanos, dedicado à troca de ideias, atenção, apoio, fortalecimento da identidade e reconexão com a história e cultura africanas. O intuito é proporcionar um espaço seguro e inclusivo, fortalecimento e protagonismo da identidade e da autoestima, e enfrentamento de situações adversas, como aquelas relacionadas ao racismo e discriminação.

Os resultados desse trabalho vêm sutilmente surtindo efeitos na autoestima, no fortalecimento da identidade e na saúde mental dos participantes. A criação de um espaço conduzido exclusivamente por profissionais pretos proporciona identificação ,representatividade, ambiente de acolhimento seguro e troca enriquecedora. Além disso, as atividades como debates, passeios e oficinas de beleza têm se mostrado profícuas na promoção do empoderamento e no enfrentamento ao racismo. O grupo contribui para a construção de redes de apoio e amizades, promovendo um ambiente de aprendizado compartilhado e de desenvolvimento de habilidades sociais e emocionais. Entre as experiências exitosas, destaca-se da adolescente P., 15 anos. Inicialmente, P. enfrentava desafios consideráveis, incluindo a dependência química dos pais, a sua ida para o abrigo, além do uso de substâncias psicoativas. Ao integrar o grupo, P. encontrou um ambiente que fortaleceu sua autoestima, a partir da identificação com profissionais e nas rodas de conversas com outros usuários que compartilhavam experiências semelhantes. O grupo promoveu o senso de pertencimento por meio de visitas a museus, teatros e salões de beleza afro. Destaca-se o desenvolvimento de um projeto de vida junto com P., mostrando um compromisso com seu crescimento pessoal. O avanço terapêutico foi observado a partir do envolvimento ativo, inclusive ajudando novos usuários que se juntaram ao grupo. Os resultados positivos extrapolaram o âmbito do grupo, refletindo-se em melhorias escolares, participação em cursos e a conquista de um emprego como jovem aprendiz.

O Grupo Escurecendo Ideias não se limitou à intervenção terapêutica diante do sofrimento psíquico, mas também se destacou por promover o empoderamento, ao oferecer um ambiente seguro, pautado na identidade e representatividade proporcionadas por profissionais exclusivamente pretos. Esse ambiente seguro se tornou fundamental para o fortalecimento e ampliação do repertório de recursos psíquicos, através da história e cultura do provo preto contada por iguais, promovendo o o enfrentamento de situações adversas, reconhecimento, orgulho e autoestima, apresentando-se como prática exitosa facilmente replicável em outros serviços de saúde mental no país.

Principal

Farley da Silva Graciano dos Santos

contatos.zoom@gmail.com

Acompanhante Terapêutico

Coautores

Farley da Silva Graciano dos Santos, Anselmo de Oliveira, Eliane Ferreira de Andrade, Marinês Santos de Oliveira

A prática foi aplicada em

Santo André

São Paulo

Sudeste

Esta prática está vinculada a

Rua David Campista, 242 - Vila Guiomar, Santo André - SP, Brasil

Uma organização do tipo

Instituição Pública

Foi cadastrada por

Marines Santos de Oliveira

Conta vinculada

24 abr 2024

CADASTRO

26 jul 2024

ATUALIZAÇÃO

Condição da prática

Concluída

Situação da Prática

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