A (in)visibilidade de quem está em situação de rua: caminhos possíveis para cuidado em saúde

A população em situação de rua é um grupo heterogêneo que possui alguns pontos em comum, como os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, utilizando-se de áreas públicas como espaço de moradia e sustento, muitas vezes enfrentando condições de extrema pobreza e falta de acesso a recursos básicos, como alimentação, saúde, higiene e emprego (BRASIL, 2009).
A efetivação do direito à saúde dessa população enfrenta um percurso árduo, com vistas a superar as invisibilidades sociais que acompanham esse grupo, apesar do avanço com a publicação em 2009 da Política Nacional para População em Situação de Rua. O cuidado à saúde dos indivíduos em situação de rua ainda enfrenta alguns obstáculos como a dificuldade no acesso, seja pela falta de documentação ou situações de preconceito, e a não facilitação para implantação de espaços credenciados e com financiamento pelo Ministério da Saúde, já que isso está atrelado a algumas questões burocráticas como a dependência de dados de censos da população de rua.

Inicialmente surgiu uma inquietude com relação ao aumento dessa população e a dificuldade do seu acesso aos serviços básicos de saúde. Tal situação começou a ser discutida nas reuniões municipais do Conselho de Saúde e ganhou maior dimensão quando a temática surgiu como meta dentro do Plano Municipal de Saúde 2022-2025 que seria o cadastramento e a oferta de atendimento a essa população. Em 2023, mais uma vez a proposta de cuidado de saúde direcionado para essa população específica foi novamente discutida e foi elencada entre as propostas da 8ª Conferência Municipal de Saúde acontecida em Cajazeiras em março deste ano. Se deparando ainda com uma proposta muito subjetiva, em abril de 2023, mesmo que de maneira muito tímida, foi dado início às atividades de saúde voltadas especificamente para pessoas que vivem em situação de rua de Cajazeiras. Pela dificuldade de encontrar e ter vínculos iniciais com esses usuários, já que no município não existem serviços de saúde direcionados para essa população, iniciamos as atividades numa entidade religiosa que já desenvolve um trabalho social diário. Em uma reunião inicial com uma das responsáveis pelo centro, falamos sobre o projeto e a possibilidade de iniciar sua execução naquele espaço físico, ela de prontidão se disponibilizou e relatou a importância e necessidade também desse tipo de assistência visto que os usuários na grande maioria das vezes não procuram os serviços de saúde existentes, principalmente os de atenção primária, em virtude da falta de identificação com o serviço e a possibilidade de preconceitos que podem surgir. Essa experiência de assistência à saúde às pessoas em situação de rua continua a acontecer nesse espaço, e na própria rua quando necessário, reconhecendo e fortalecendo, assim, que o cuidado em saúde se produz também em outros campos, muitas vezes isentos da formalidade institucional. A equipe de saúde atualmente conta com um médico, um técnico de enfermagem, uma enfermeira e uma agente comunitária de saúde, e se desenvolve com apoio da Secretaria Municipal de Saúde.

No momento, contamos com 13 usuários cadastrados, sendo apenas uma do sexo feminino. Quanto à faixa etária, metade da população cadastrada tem até 40 anos, um usuário não conseguiu definir a idade e não apresenta documentação e o restante tem acima de 40 anos. Nesses cinco meses de atividades desenvolvidas, criou-se um formulário próprio de atendimento para essa população que continua em processo de edição e contém dados socioeconômicos, antecedentes pessoais e familiares e de registros de assistência à saúde como: vacinas e medicações administradas, sinais vitais e atendimento médico e de enfermagem. A primeira atividade foi a realização de testagem rápida para infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) com 14 usuários, dos quais 71% positivaram para uma ou mais das seguintes condições sífilis, hepatites b e c, ou HIV. Diante desse cenário, articulou-se em parceria com a gestão municipal a coleta in loco de diversos exames laboratoriais, como tipagem sanguínea, dosagens de glicemia e colesterol e para IST. Após essa etapa, foi marcado um novo encontro com os frequentadores da casa para entrega dos resultados desses exames, avaliação médica e de enfermagem e a condução clínica/medicamentosa. Atualmente, o usuário que apresentou resultado positivo para HIV está realizando tratamento antirretroviral, e outros 2 pacientes foram tratados para sífilis, o que representa 30% de tratamento para o total de infectados. Essa baixa adesão a tratamento possui multicausalidade e é uma realidade já discutida na literatura (1). Dando seguimento a essa vertente de cuidado, também já foram promovidos mais dois outros momentos de ampla testagem rápida. Em consonância com o cenário epidemiológico e considerando a importância da vacinação, já ofertamos 2 ações voltadas para atualização da situação vacinal e início dos esquemas necessários. Vale ressaltar que é entregue uma via do registro da vacinação para o usuário e também registramos a dose administrada no formulário próprio a fim de não perder o dado e assim também poder dá seguimento ao esquema.

A experiência pioneira de iniciar um processo de cuidado/assistência em saúde às pessoas em situação de rua da cidade de Cajazeiras está sendo única e promove inúmeras reflexões sobre a forma de cuidar e do quanto o sistema de saúde precisa avançar. Pode-se citar como pontos fortes desse projeto o apoio do centro de acolhimento dos usuários e da gestão municipal para o desenvolvimento das atividades; como limitações constatadas até o momento, pode-se citar a rotatividade das pessoas em situação de rua, o que dificulta a continuidade da assistência. Por fim, muitos ainda são os desafios a se enfrentar como a capacitação e aumento da equipe assistencial em quantidade e em categorias profissionais; e a extensão do espaço de cuidado além do ponto físico atual. Mesmo diante de um cenário de desafios, constatamos que essa experiência, algumas vezes desprendida de muita formalidade, mas embasada em escuta qualificada, acolhimento, compartilhamento de saberes, planejamento simplificado e o comprometimento, solicitude e empatia dos envolvidos tem, ainda que de maneira pontual e discreta, mudado a realidade daquelas pessoas que encontraram nossas mãos estendidas para ofertar cuidados em saúde.

Principal

José Olivandro Duarte de Oliveira

olivandro_duarte@hotmail.com

Médico

Coautores

Daianny Pereira Ângelo; José Olivandro Duarte de Oliveira; Sandra Maria Rolim Honório; Maria Edinalda da Silva; Maria Gisélia Pereira da Silva; Cícero Rolim das Chagas; Simone Rolim; Ceone Abreu de Souza; Raísa Barbosa de Andrade; Alexsandra Layani Faustino de Andrade; Mychelle Dantas de Almeida Noleto.

A prática foi aplicada em

Cajazeiras

Paraíba

Nordeste

Esta prática está vinculada a

Estratégia de Saúde da Família Francisco Alves (Mutirão I)

Uma organização do tipo

Instituição Pública

Foi cadastrada por

José Olivandro Duarte de Oliveira

Conta vinculada

16 abr 2024

CADASTRO

26 jun 2024

ATUALIZAÇÃO

04 out 2023

inicio

Condição da prática

Andamento

Situação da Prática

Arquivos

TAGS

nenhuma

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