Como os saberes tradicionais afro-brasileiros se dão na prática? Quais são os lugares ocupados pelas plantas medicinais nos territórios tradicionais, influenciados pelas religiões de matrizes africanas? Que contribuições os saberes tradicionais trazem ao SUS? E como o SUS pode e deve apropriar-se deste vasto legado? As respostas a estas perguntas permearam o 1º Encontro Saberes Tradicionais, Plantas Medicinais e Saúde: o legado dos territórios tradicionais afro-brasileiros, realizado no dia 15 de setembro, na Fiocruz, no Rio de Janeiro (RJ).
Organizado pela Comunidade de Práticas de Saberes Tradicionais da Plataforma IdeiaSUS Fiocruz, o encontro reuniu profissionais de saúde, integrantes dos territórios tradicionais, pesquisadores e lideranças das religiões de matrizes africanas. Este primeiro encontro sobre plantas medicinais da IdeiaSUS Fiocruz ajuda com a disseminação e a multiplicação das ações de preservação do patrimônio histórico imaterial, existentes nos territórios tradicionais afro-brasileiros. Para assistir à íntegra do encontro, acesse o canal da IdeiSUS Fiocruz no Youtube.
Da mesa de abertura, participaram Valber Frutuoso, assessor de Relações Institucionais da Fiocruz, Valcler Rangel, assessor especial do Ministério da Saúde (MS), ogã Jaçanã Gonçalves, do Grupo de Estudos Braulio Goffman, mestre Ele Semog, da Coordenadoria de Experiências Religiosas Africanas, Afro-brasileiras, Racismo e Intolerância Religiosa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vereador Edson Santos, presidente da Comissão de Cultura da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, e Denise Vieira, do Coletivo de Erveiras e Erveiros do Salgueiro (RJ). “Caboclo foi no mato colher folhas. Caboclo foi no mato trabalhar…”, entoou Frutuoso um cântico de Caboclos, para saudar os presentes. “Queremos deixar o Ministério da Saúde à disposição para abrigar a temática”, realçou Rangel.
O território na prática
O encontro trouxe à tona o Coletivo de Erveiros e Erveiras do Salgueiro, formado por moradores do Morro do Salgueiro, favela localizada no bairro da Tijuca, zona Norte do Rio de Janeiro. A localidade, assim como outras favelas do bairro, integrava uma plantação de café até o final do século 19, se mostrando uma das comunidades pioneiras em ocupação. No início do século 20, foi ocupada por ex-escravos, migrantes nordestinos e imigrantes. Ali, residiu e, ainda, reside, parte da ancestralidade afro-brasileira do Rio. Ao longo dos últimos anos, o Coletivo vem construindo hortas comunitárias, recuperando quintais de antigas casas do Salgueiro, promovem reuniões com a comunidade sobre plantios de mudas, realizam reflorestamento e o cultivo da Mata Atlântica no entorno do morro, que está dentro da Floresta da Tijuca, além de trabalho de educação ambiental e alimentar junto à comunidade, mantendo, também, relação direta com a unidade básica de saúde local.
Apresentando a experiência, estiveram Denise Vieira, Álvaro Silva de Souza, Marcelo da Paz Rocha, Silvania da Silva e tia Vera, como é conhecida um das matriarcas da comunidade. “Ancestralidade é a palavra que marca a favela do Salgueiro. O Caxambu do Salgueiro, por exemplo, é patrimônio histórico imaterial”, ressaltou Marcelo, elencando as principais ações desenvolvidas pelo coletivo, todas baseadas nos conhecimentos das matriarcas e patriarcas do Morro.
Da esq. para a dir., Denise Vieira, Álvaro de Souza, Marcelo da Paz Rocha, Silvania da Silva e tia Vera, matriarca do Morro do Salgueiro.
Foto: Katia Machado / IdeiaSUS Fiocruz
Segundo ele, as plantas do território estão sendo paulatinamente catalogadas, tanto as medicinais quanto as comestíveis. “Nós estamos geolocalizando as plantas, ouvindo sempre as matriarcas e os patriarcas”, anunciou. De acordo com a educadora ambiental Denise Vieira, o coletivo já catalogou mais de 50 hortas no Salgueiro. Outras iniciativas do coletivo: uma biblioteca que traz uma vasta bibliografia sobre as plantas medicinais; oficinas; preparação de receitas, herdadas de seus ancestrais; colheita de alimentos do axé, como o caruru, que é usado nas festas de erê; entre outras. “Eu faço um bolo de cubu, que leva leite azedo, aproveitando integralmente o alimento”, exemplificou Marcelo, que também é chefe de cozinha. Ele desenvolveu uma empada de queijo minas com ora-pro-nóbis, para uma das últimas edições do Rock in Rio. “Foi uma das melhores iguarias do evento”, garantiu, informando que faz muitas outras receitas com a folha.
Emanoel Campos Filho, pesquisador da IdeiaSUS Fiocruz e um dos organizadores do encontro, explica que ao trazer experiências com a do Salgueiro, a Comunidade de Práticas de Saberes Tradicionais da IdeiaSUS Fiocruz lança luz a territórios afro-brasileiros e a seus conhecimentos, contribuindo com o SUS, em especial, com a Atenção Primária à Saúde. “Ajuda, ainda, com o desenvolvimento de pesquisas voltadas ao pleno uso das plantas medicinais utilizadas por esses territórios”, acrescentou.
Reflexões sobre os saberes dos terreiros
Ogã Jaçanã Gonçalves e Babalawo Eduardo Napoleão falam sobre o lugar das plantas medicinais nos terreiros tradicionais.
Foto: Katia Machado / IdeiaSUS Fiocruz
O 1º Encontro Saberes Tradicionais, Plantas Medicinais e Saúde: o legado dos territórios tradicionais afro-brasileiros, cujo vídeo está disponível no canal da IdeiaSUS Fiocruz no Youtube, reverberou diferentes vozes, entre elas a de Tata Inkice Sajemi, Babalawo Eduardo Napoleão e Ogã Jaçanã Gonçalves, que falaram sobre o lugar das plantas medicinais nos terreiros tradicionais. “Vemos as plantas enquanto elemento de saúde, pois cura, alimenta, preserva o território”, destacou o Ogã Jaçanã Gonçalves, realçando ainda que “atenção à saúde é se cuidar antes do estabelecimento da doença”.
Sobre as possibilidades de contribuição do saber tradicional afro-brasileiro na construção do SUS falaram a professora aposentada Yara Britto, do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro, o professor Danilo Ribeiro de Oliveira, da Faculdade de Farmácia e coordenador de Biodiversidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o professor Estélio Gomberg, da Universidade Estadual de Santa Cruz (BA).
Yara Britto destacou as muitas histórias relativas às plantas sagradas e medicinais que os terreiros têm a contar, focalizando o binômio tradição e ciência. “Tradição e ciência não são excludentes, mas sim complementares”, estimulou o debate. Terreiro, segundo ela, é um espaço físico onde tudo acontece, não somente espaço religioso. “É o lugar de encontro, conversa, festividades, comemorações, iniciação, cultivo de plantas, tradição e transmissão de conhecimento”, definiu, apresentando vários exemplos de plantas medicinais reconhecidas pela ciência, usadas também em terreiros.
Mencionando em vários momentos o Coletivo de Erveiras e Erveiros do Salgueiro, face especialmente ao trabalho de catalogação das plantas medicinais que realiza, ela reforçou: “Quando você identifica o exemplar, ela passa a ter nome e sobrenome”. Realçou, também, os passos a serem seguidos na identificação das plantas medicinais: depositar material em herbário; anotar dados de localização e procedência; complementar informações com dados de literatura; marcar matrizes e retirar material reprodutivo; produzir mudas da matriz selecionada; intercambiar material, registrando dados; e criar grupos para trocas de conhecimentos. “O ponto de partida é selecionar plantas de uso comprovado e que são ritualísticas. Estejam atentos às interações entre plantas e medicamentos”, orientou.
Da esq. para a dir., prof. Yara Britto, do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do RJ; prof. Danilo de Oliveira, da Faculdade de Farmácia e coordenador de Biodiversidade da UFRJ; e prof. Estélio Gomberg, da Universidade Estadual de Santa Cruz (BA).
Foto: Katia Machado / IdeiaSUS Fiocruz
Danilo, por sua vez, focalizou as contribuições trazidas pelas medicinas tradicionais africana e indígena. Ele chamou atenção para o risco da mercantilização das práticas tradicionais, dando como exemplo a comercialização da Ayahuasca, comumente usada pelos povos originários. Realçou a importância das pesquisas sobre as plantas medicinais, da sistematização das informações e da criação de farmacopeias. “Precisamos dar visibilidade aos conhecimentos tradicionais, em respeito e pela valorização da ancestralidade”, finalizou.
Estélio sugeriu o aprimoramento das ações dos Saberes Tradicionais. “Para isso, é preciso ampliar o diálogo, envolvendo Ministério da Justiça, no combate aos racismos, em especial ao racismo religioso, Ministério do Meio Ambiente, no combate à biopirataria, e Ministério da Cultura, para que se tenha a valorização patrimonial, pensando o terreiro de candomblé e outras religiões afins como espaços de museus”, recomendou. “Precisamos trazer diversas vozes, setores, áreas de conhecimentos para institucionalizarmos o uso de vegetais nas políticas públicas”, finalizou.
Comunidade de Práticas de Saberes Tradicionais e o SUS
Criada em 2022, a Comunidade de Práticas de Saberes Tradicionais da Plataforma IdeiaSUS Fiocruz é um espaço de reconhecimento da importância científico-cultural dos conhecimentos tradicionais e de compartilhamento de suas práticas, de forma a conferir proteção e legitimação efetiva a estes saberes. Com foco no SUS, destaca a importância das práticas e saberes tradicionais a partir de diferentes políticas de saúde.
A Comunidade realça que a relação entre os Saberes Tradicionais e a Saúde se dá desde as mais remotas épocas do conhecimento humano. Esses saberes reúnem um conjunto de informações, modos de saber-fazer, criar e cuidar, que são transmitidos oralmente, como tática de resistência, em ritos de partilha de saberes de determinado grupo, transcendendo gerações, geralmente agregados à biodiversidade, que representam seu trabalho, cultura, práticas e costumes.
Por Katia Machado, Plataforma IdeiaSUS Fiocruz