Na sexta-feira passada (11/8), após alguns adiamentos da cerimônia de anúncio, o governo federal apresentou o pacote de investimentos que compõem uma nova edição do Programa de Aceleração do Crescimento, ou Novo PAC. Está previsto R$1,7 trilhão em recursos a serem divididos entre nove eixos prioritários – um deles, a Saúde.
Poucos dias depois, na segunda-feira (14/8), foi a vez da ministra da Saúde Nísia Trindade, acompanhada por todo seu secretariado, repassar em coletiva de imprensa os detalhes do eixo que contempla sua área, subdividida ainda em cinco sub-eixos: atenção primária, atenção especializada, preparação para emergências sanitárias, complexo industrial da saúde e telessaúde. Neles, serão alocados quase R$31 bilhões, em sua maioria (mais de R$29 bilhões) até o fim do terceiro mandato de Lula, em 2026.
Francisco Funcia, presidente da Associação Brasileira de Economia em Saúde (ABrES), conversou com Outra Saúde na última tarde (15/8) para fazer uma primeira avaliação dos anúncios em torno do Novo PAC, além de compartilhar ideias para uma ampliação ainda mais ousada.
A lista completa de projetos anunciados pode ser encontrada na página do Novo PAC, hospedada no site da Casa Civil. Mas alguns dos principais pontos merecem menção específica: com prazo para 2026, o governo pretende construir 3,6 mil Unidades Básicas de Saúde (UBSs), 860 centrais de regulação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), 360 unidades odontológicas móveis, 200 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), 150 maternidades, 90 policlínicas, 60 centros especializados para pessoas com deficiência, 48 centros de radioterapia com aceleradores lineares e 17 hospitais federais e estaduais.
Segundo Nísia, o ambicioso objetivo do conjunto de obras é alcançar a universalização de todos esses serviços de atenção primária e especializada no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), erradicando os vazios assistenciais ainda existentes em algumas regiões do país.
O fortalecimento do complexo econômico-industrial da saúde foi uma promessa de campanha de Lula que selou sua aliança com os movimentos de saúde. Dando consequência às promessas, o governo anunciou a construção de uma nova planta para o Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde (CIBS), a ser instalada no campus de Santa Cruz da Fiocruz, e de um parque fabril de hemoderivados da Hemobrás.
Em uma obra compartilhada com o eixo de Educação, Ciência e Tecnologia do novo PAC, também será implantado em Campinas (SP) um laboratório de biossegurança máxima (NB4, no jargão científico), equipamento hoje inexistente na América Latina. Nessa mesma parceria, serão concluídas as obras de diversos hospitais universitários.
Nem todo o R$1,7 trilhão virá dos cofres públicos: em proporção maior que no primeiro PAC, o programa dependerá — com todos os ônus e bônus que daí advém — do aporte da iniciativa privada para cerca de um terço dessa cifra. No eixo da Saúde, porém, a situação é distinta. Os R$31 bilhões virão inteiramente do governo, segundo as informações da Casa Civil.
Abaixo, a íntegra da entrevista.
Na tarde de ontem, Nísia e a equipe do ministério apresentaram os detalhes dos investimentos do Novo PAC na Saúde. Quais são suas primeiras impressões sobre esse conjunto de diretrizes para obras e investimentos?
A primeira questão importante desse anúncio do novo PAC é a retomada do que estava paralisado. É um sinal bastante positivo de um compromisso do governo federal, pensando de uma maneira agregada, com a retomada de investimentos públicos que tenham repercussão direta sobre as condições de vida das populações nas cidades.
Esse volume de investimentos que estão sendo pensados para a saúde é bastante significativo por várias razões. Primeiro, porque a soma de 31 bilhões [até 2026], ou quase 31 bilhões, corresponde aproximadamente a 20% de tudo que se gasta com saúde no ano, pegando a base do orçamento deste ano. É um volume significativo.
Qual é a importância do investimento público em geral, e na saúde em particular? É que o investimento público possibilita uma retomada da dinâmica econômica pelo efeito gerador de atividade econômica em outras áreas. Ele tem um efeito multiplicador sobre o processo de geração de emprego e renda. O “gasto” em investimento gera um efeito do próprio investimento, de um lado, mas ele também dinamiza outros setores da economia. É isso que gera um efeito irradiador do ponto de vista da possibilidade de crescimento.
No caso da saúde, ele combina a possibilidade da melhoria das condições de saúde da população com efeitos positivos também sobre a produtividade da economia e sobre as condições de vida das pessoas, não só no que diz respeito à sua saúde, mas também no que toca a poder desfrutar de outras coisas como educação, lazer, moradia, etc., que aí o conjunto das obras do PAC vai propiciar para a população aspectos que são determinantes para a saúde das pessoas. Então é muito positivo, sem dúvida nenhuma, esse anúncio do PAC de uma maneira geral.
Pegando só o caso específico da saúde, o efeito que ele também gera do ponto de vista, por exemplo, do complexo econômico-industrial da saúde, que receberá um valor importante de 8,9 bilhões, é positivo para melhorar aquilo que a gente considera um dos aspectos essenciais para a nossa soberania sanitária. Vimos o que aconteceu com o Brasil na pandemia, em que dependíamos de importações para muitas coisas, como para acessar vacinas e outros medicamentos. A possibilidade de fortalecer o nosso complexo econômico-industrial da saúde representa para a população a chance de aumentar a sua soberania sanitária, possibilita condições concretas de a gente garantir a vida das pessoas sem ficar dependendo, em um momento de crise sanitária, daqueles que têm mais poder econômico para conseguir suprir as suas necessidades em detrimento de outros países que não têm. Esse será um avanço concreto.
Outro avanço importante é o investimento na atenção primária. Especialmente pelo fato de que ele vai estar bastante concentrado na construção de unidades básicas de saúde, que a gente sabe que é a porta de entrada do Sistema Único de Saúde. Na perspectiva do fortalecimento da atenção primária, isto é importante, e evidentemente quando você pensa em investimento, você vai pensar na sequência: vão ser construídas UBSs e algumas até podem substituir unidades que já existiam ou unidades alugadas, mas a maior parte é ampliação da cobertura. Na medida que envolve ampliação, você vai contratar mais profissionais de saúde, fortalecer a carreira do SUS, comprar mais medicamentos, mais insumos, e aí entra esse efeito radiador da cadeia econômica que eu mencionei anteriormente.
O novo PAC, mais até do que a primeira edição do programa, no governo Lula II, tem uma certa preponderância do investimento privado. Porém, especificamente na saúde, todos os investimentos anunciados são públicos – ainda que isso não exclua a eventual entrega da gestão dos equipamentos para uma parceria público-privada. O que pode explicar essa excepcionalidade da saúde?
Acredito que é um compromisso com o SUS constitucional. Saúde é direito de todos e dever do Estado, segundo a Constituição, e as ações e serviços públicos de saúde são consideradas de relevância pública também pela Constituição. É a combinação dos artigos 196 e 197 da Constituição Federal. Então, essa perspectiva de ter um SUS público em que predomine o investimento público direto dá a garantia de que se está tratando a saúde como algo realmente estratégico para o país.
Por mais que a gente entenda a importância de modelos de financiamento de investimentos que envolvam o setor privado, como nas parcerias público-privadas, é evidente que, em qualquer modalidade de financiamento que o envolve, é natural que ele tenha como objetivo primeiro o lucro.
A saúde não pode ficar vinculada a uma visão que envolva uma perspectiva de lucro para o setor privado. A perspectiva de lucro para o setor privado vai advir naturalmente daquilo que tem a interface do setor público, por exemplo, se vai comprar medicamentos, vai comprar insumos. Ou até, também, se estão sendo contratados mais profissionais de saúde, esses profissionais de saúde vão gastar o dinheiro dos seus salários no mercado, comprando coisas que o setor privado produz. Essa relação é possível. Agora, condicionar a lógica do investimento em saúde a uma lógica do lucro retiraria muito da capacidade de se tratar a saúde como algo de interesse público e um direito humano. Isso se sobrepõe à lógica privada. É preciso ficar evidente a priorização do SUS enquanto um sistema único de saúde público e que o interesse público deve estar acima de tudo.
O setor privado, nos últimos anos, se dedicou bastante à ampliação da telessaúde no Brasil. Agora, o governo anunciou uma parte expressiva dos investimentos do novo PAC para a telessaúde. São R$250 milhões, com foco na criação de centros que atendam populações mais isoladas, hoje desassistidas. Como você vê esse crescimento do investimento em telessaúde pelo setor público?
É um investimento importante, mas na minha leitura, dentro do orçamento geral da saúde, R$250 milhões é uma participação pequena. Ou seja, não se está substituindo outras técnicas. Você não está digitalizando toda a saúde, digamos assim. Se está introduzindo essa questão da saúde digital, que é uma tendência que tem se observado nos últimos anos e que é importante buscar garantir que ela venha a serviço do atendimento das necessidades de saúde da população.
Acho que o mais importante é que a gente possa acompanhar todos esses projetos que estão sendo pensados [na Saúde Digital] com a perspectiva de que se está buscando agregar valor no atendimento das necessidades de saúde da população. Na medida que o setor público faz isso, a gente tem a expectativa de que ele esteja fazendo com o olhar do interesse público. Porque, muitas vezes, na lógica do setor privado, essa coisa da telemedicina e da telessaúde vem com um olhar pelo lucro, uma lógica que é a da acumulação do capital. No caso do setor público, é interessante a gente verificar o conjunto dos projetos que estão sendo desenvolvidos, porque eles têm que estar atrelados ao interesse público. E aí se pode, inclusive, trazer contribuições sobre como potencializar para os interesses da maioria da população a telessaúde.
Os investimentos do Novo PAC são da ordem de R$1,7 trilhão. Disso, R$31 bilhões vão para a saúde. Em termos proporcionais, é algo como 1,8% do total. É muito ou pouco para a área?
Em termos relativos, é pouco. Por quê? Porque, se você olhar o orçamento público como um todo, a saúde tem uma fatia expressiva. É o segundo maior ministério depois da Previdência. Se olhar por esta ótica, é proporcionalmente baixo. Por outro lado, ainda que esses R$31 bilhões ultrapassem um ano, esse volume de investimentos representaria 20% do orçamento anual da saúde. Esse é um dado expressivo.
Agora, o que me parece, e aí eu acho interessante retomar o que você falou, é que dentro desse R$1,7 trilhão tem muita coisa que envolve parcerias público-privadas em outras áreas. Aqui, o que é interessante de se observar é que nós temos o predomínio dos investimentos públicos diretos. São praticamente 100%. E aí, nessa perspectiva, a gente tem a possibilidade de entender isso como um processo inicial.
Por quê? Porque para aumentar isso, entramos num embate muito atrelado, com absoluta certeza, ao cumprimento do piso da saúde. Na medida em que o piso da saúde está comprimido para baixo historicamente, esse problema do subfinanciamento do SUS aparece. Portanto, me parece também que a questão dos investimentos na saúde sofre também a consequência desse problema do subfinanciamento geral.
Só para dar um número, esse ano nós retomamos o piso equivalente a 15% da receita corrente líquida da União. Esse piso dos 15% da receita corrente líquida da União é infinitamente melhor do que era o congelamento que a Emenda Constitucional 95 [a PEC do Teto de Gastos] tinha estabelecido, que fez com que o SUS perdesse 70 bilhões. Ou seja, perdeu quase duas vezes e meia a mais do que os valores do PAC.
Voltaram os 15% da receita corrente líquida, o que foi um avanço importante, mas esse avanço tem que ser entendido como um ponto de partida para buscar um financiamento adequado do SUS. Qual é esse financiamento adequado? Se a gente procura os parâmetros internacionais, aproximadamente 60 a 70% de todo o gasto em saúde – ou seja, somando o público com o privado – é aplicado em saúde pública. Dessa forma, o gasto público tem uma participação maior do que o gasto privado.
No Brasil, é o contrário. Veja: o Brasil aplica em termos de gasto total em saúde o mesmo que os principais países do mundo aplicam, entre 9 e 10% do PIB. O Brasil aplica 9,6% do PIB do gasto em saúde, na soma entre público e privado. Mas se pegar só o gasto público, que é a soma da união com os estados e dos municípios, a gente aplica em torno de 3,9%. Então, o que acontece? A gente aplica só um pouquinho mais de 40% de tudo que se gasta em saúde, ao passo que, como eu disse, nos outros países se aplica 60, 70% de gasto público. Precisaríamos, no mínimo, fazer com que o gasto público atingisse 60% do total do gasto. Para isso, a gente tem que buscar formular essa meta do quanto deve aumentar o gasto público em saúde.
A gente já tem alguns números. O governo federal gasta cerca de 42% do gasto público total em saúde. Estados e municípios gastam juntos 58% do gasto total em saúde. Mas o governo federal, a União, é a que tem a maior capacidade de arrecadação. Ela centraliza a maior parte dos recursos. Do ponto de vista tributário, o que mais se arrecada de tributos são tributos federais.. Então, o que a gente entende? Que se mais da metade dos recursos arrecadados são federais, pelo menos metade da aplicação do gasto público tinha que ser federal.
Já existe um espaço para o gasto público crescer e representar, no mínimo, metade do gasto total em saúde. Se estivermos trabalhando com a referência de que o gasto público em saúde tem que ser 6% do PIB, então o gasto público federal teria que ser, no mínimo, 3%. Nós temos que buscar isso. Temos que buscar chegar nesse patamar. E isso significa que a gente teria que dobrar o gasto federal em saúde, em relação ao que se tem hoje, em números redondos.
Agora, é claro que isso não vai ser feito de uma hora para outra. Mas é preciso começar a planejar de onde vamos sair para depois seguir pensando onde vamos chegar. Ou seja, temos que entender que os 15% da receita corrente líquida é o piso, o ponto de partida. Não podemos, em hipótese alguma, pensar em propostas que reduzam esse piso federal do SUS. Temos que pensar como fazemos para aumentar esse piso, para romper o subfinanciamento e chegar em padrões de aplicação em saúde próximo do cenário internacional, especialmente de sistemas universais de acesso universal à saúde.
Por Guilherme Arruda*, entrevista publicada originalmente no site Outra Saúde, em 16/8/2023.