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A arquitetura a serviço da Saúde da Família

Projeto Nenhuma Casa Sem Banheiro melhora condições sanitárias e de moradia de famílias gaúchas de baixa renda

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Operário do Nenhuma Casa Sem Banheiro finaliza a pintura de uma unidade a ser entregue. Créditos: Sul21

Tiago Holzmann em entrevista a Guilherme Arruda*

Os números de um levantamento do Instituto Trata Brasil apontam que, em 2022, eram 5,5 milhões os cidadãos sem banheiro em casa. Por um lado, o dado denota o quanto o país está distante de garantir moradia digna para todos os seus habitantes – direito assegurado pelo artigo 6º da Constituição Federal de 1988. Por outro, a estatística representa também um desafio para o Estado brasileiro por um segundo ângulo: quantas problemas de saúde não poderiam ser prevenidos – e quantos gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) não poderiam ser economizados – através da realização de melhorias bastante simples nos lares dessas milhões de pessoas?

Uma notável iniciativa do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS) serve como um exemplo de parceria entre poder público e sociedade voltada para a garantia de direitos fundamentais, e abre caminhos para enfrentar essa situação. O projeto tem o nome de Nenhuma Casa Sem Banheiro, e “teve início bem no começo da pandemia”, conta o presidente do CAU/RS Tiago Holzmann ao Outra Saúde.

Como já sugere o nome da ação, até o final de 2023, serão construídos novos banheiros em 1,6 mil residências de baixa renda de uma série de cidades gaúchas por meio de parcerias com órgãos como o Ministério Público, a Defensoria Pública e as prefeituras locais. As famílias beneficiadas foram selecionadas através de consultas com os serviços de saúde e assistência social dos municípios contemplados, para garantir que as informações coletadas “das pessoas que estão no campo fazendo atendimentos” fossem levadas em conta no esforço de mitigar a falta de banheiros, disse Holzmann. Já os arquitetos do projeto, que assumem o compromisso de pactuar com as famílias as alterações na estrutura de suas casas,  foram selecionados pelo CAU/RS.

Com a entrada do novo governo federal neste ano, o projeto pode alcançar um novo patamar. O presidente do CAU/RS afirma que há condições para levar o Nenhuma Casa Sem Banheiro para além do território gaúcho – e que já existem “conversas com o ministério da Saúde e com o ministério das Cidades para nacionalizar esse projeto a partir das estruturas da saúde”. A proposta inclui um detalhe instigante: a inclusão de arquitetos nas Equipes de Saúde da Família. “Em vez de criarmos uma estrutura exclusiva de atendimento ao tema da habitação, queremos incluir a melhoria das moradias como mais um item na assistência à saúde das famílias”, ele explica.

A Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social, ou Lei de ATHIS, é o principal instrumento de implementação do projeto. Ela “prevê que todas as famílias com renda de até 3 salários mínimos têm direito à assistência técnica de um arquiteto, urbanista ou outro profissional ligado ao tema da moradia para construir sua casa, qualificá-la”, esclarece o arquiteto.

Promulgada em 2008, “a lei foi criada para regulamentar o artigo 6º da Constituição, que diz que a moradia é um direito constitucional, mas esse direito não está assistido por um mecanismo que garanta esse direito a toda a população”, opina ele. “Ela é uma dessas leis que ‘não pegou’ tanto, por exigir um arranjo institucional complexo. Por conta disso, desde 2015, nós do CAU/RS estamos investindo no mínimo 2% do nosso orçamento para promover e incentivar a implementação efetiva dessa legislação”, conta o presidente da autarquia.

A meta de universalizar o acesso a um banheiro digno pode ser mais árdua do que os dados do IBGE sugerem. “Os dados estão subdimensionados, porque são autodeclarados”, considera Holzmann. Muitas vezes as famílias constroem um banheiro improvisado, bastante precário, e já indicam ao censo que possuem um banheiro, ainda que isso não signifique que sua demanda por melhores condições sanitárias esteja resolvida. Por isso, ele acredita, o número de famílias no Rio Grande do Sul sem banheiro é bem maior que as estimativas oficiais. Disso, decorre a tarefa de ampliar a escala do Nenhuma Casa Sem Banheiro – ainda mais caso se confirme a sua implementação a nível nacional.

“Há uma extrema urgência e necessidade de enfrentar de maneira organizada esse problema, que vem sendo relegado há muito tempo. É possível ampliar o projeto para começar a trabalhá-lo em grande escala para o país inteiro, principalmente para as periferias das grandes cidades”, alega o presidente do CAU/RS, confiante na importância da iniciativa capitaneada pela entidade.

Outra Saúde disponibiliza a seguir a íntegra de sua entrevista com Tiago Holzmann, uma conversa que girou em torno dos detalhes do projeto Nenhuma Casa Sem Banheiro.

Tiago, conte um pouco sobre como surgiu o projeto Nenhuma Casa Sem Banheiro.

No último período, nós temos desenvolvido um conjunto de ações de promoção de uma legislação federal, que é a Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social [a Lei de ATHIS, ou Lei nº 11.888/2008]. Essa lei foi criada para regulamentar o artigo 6º da Constituição, que diz que a moradia é um direito constitucional, assim como vários outros. Para alguns esses outros, a gente tem sistemas públicos de atendimento a esse direito, como é o caso do SUS na Saúde, as escolas, creches e universidades públicas na área da Educação, as polícias e o acesso gratuito à justiça, no caso da segurança, e por aí vai. Para a moradia, não existe um sistema público. Ou seja, a moradia digna é um direito, mas esse direito não está assistido por um mecanismo que garanta esse direito a toda a população.

Essa lei é de 2008 e está completando agora 15 anos, mas ela é uma dessas leis que “não pegou”. Ela exige um arranjo institucional relativamente complexo, assim como é o caso do SUS ou da área da educação, mas a gente percebe que não há um empenho dos órgãos governamentais, em geral, para a implementação sistemática dela. Por conta disso, desde 2015, nós do CAU/RS estamos investindo no mínimo 2% do nosso orçamento para promover e incentivar a implementação efetiva dessa legislação. A Lei de ATHIS prevê que todas as famílias com renda de até 3 salários mínimos têm direito à assistência técnica de um arquiteto, urbanista ou outro profissional ligados ao tema da moradia para construir sua casa, fazer melhorias nelas, qualificá-la, dar mais segurança ou garantir condições mais saudáveis e estáveis, inclusive do ponto de vista físico.

Desse entendimento, o que a gente construiu primeiro foi um projeto nosso mais de fundo, chamado Casa Saudável. Para nós, uma casa doente deixa uma família doente. Ou melhor, uma casa sem condições de higiene, sem estabilidade, oferece riscos de saúde e de segurança para as famílias. No projeto Casa Saudável, o arquiteto passa a ser um profissional que também colabora com a saúde, no sentido de que nós precisamos estar junto com os profissionais da área da saúde para impedir que a casa seja um vetor de doenças. Muitas vezes, em uma casa em más condições, não adianta apenas tratar as doenças das pessoas que moram nela,  porque elas seguirão doentes e submetidas aos riscos que sua própria moradia oferece.

No começo da pandemia, a recomendação era “fique em casa, lave as mãos”. Para pessoas mais de classe média, é uma solução até confortável ficar em casa para não se expor à doença. Entretanto, para uma parcela importante da nossa população, a casa não é um ambiente seguro que oferece essa garantia no tema da salubridade e da segurança. Muitas casas sequer têm um ponto de água potável, ou um banheiro em condições mínimas, que tenha um banheiro com pia, com vaso e com chuveiro com água quente e o devido destino de esgoto.

Com isso em mente, a gente lançou esse projeto Nenhuma Casa Sem Banheiro, que teve início bem no comecinho da pandemia.

Para lançar o Nenhuma Casa Sem Banheiro, o CAU/RS procurou parceiros como o Tribunal de Contas e o Ministério Público. Como tem sido essa experiência de realizar o projeto em parceria com o poder público?

A partir de uma ação institucional, nós tivemos a adesão de entes como o governo do Rio Grande do Sul, a Federação de Municípios do estado, o Ministério Público, o Ministério Público de Contas, e a Defensoria Pública. Recebemos apoio também do Escritório Brasileiro do ONU Habitat. Ou seja, conseguimos reunir um conjunto de instituições que perceberam a gravidade desse momento e a relevância do projeto. Desde então, a gente vem trabalhando com essas instituições e também outras, como algumas associações de arquitetos e urbanistas. Conseguimos fazer um arranjo institucional que permitiu dar muita velocidade para o projeto. Em pouco tempo, distribuímos ações e tarefas para que cada um desses entes fizesse a sua parte. No geral, estamos conseguindo realizar um trabalho de muito sucesso.

Até o final do ano, por meio dessa iniciativa, vamos entregar 1.600 banheiros no Estado do Rio Grande do Sul para famílias que não têm banheiros. Tem uma senhora que fez um depoimento dizendo que há 20 anos ela não tomava banho de chuveiro. Outras várias famílias acabavam usando o banheiro de alguma forma improvisada, recorrendo aos vizinhos. Essa entrega acontece em parceria com o governo do Estado e com diversas prefeituras. O papel do CAU, além do arranjo institucional, foi organizar a seleção e contratação dos arquitetos que fizeram o atendimento das famílias. A partir daí, o arquiteto visitou a família, fez as medições, propôs o local de inclusão, propôs e aprovou com a família o local de inclusão do banheiro na casa existente e acompanhou depois a execução da obra.

Como foi a recepção do projeto pelas famílias contempladas? Como se desenvolveu a relação dos técnicos com elas?

Tem sido ótima, a receptividade é excelente. A gente chega nas comunidades pela mão do pessoal da assistência social e do SUS. As equipes do município já sabem quais são as famílias que necessitam e quais são as áreas mais necessitadas da cidade. Assim, a gente tem conseguido atender ao problema diretamente nos locais onde ele é mais grave. Nós nos colocamos como parceiros das equipes de saúde e de assistência social locais para poder ser bastante assertivos na escolha e no atendimento das famílias.

Você citou que o Nenhuma Casa Sem Banheiro tem a perspectiva de atender cerca de 1.600 famílias até o final de 2023. O projeto reúne as condições para tomar uma escala maior e atender, por exemplo, algumas dezenas de milhares de famílias? Existe possibilidade de nacionalizá-lo?

Nós estamos em uma discussão avançada com o Ministério da Saúde. A receptividade que a gente teve no MS foi excelente. O que a gente percebe é que, nesses primeiros meses, foi uma política de todos os ministérios dar prioridade à reconstrução de políticas públicas que foram abandonadas pelos governos anteriores.

Essa política que nós estamos propondo, de incluir um arquiteto nas equipes de saúde, é bastante inovadora. Mas a intenção do Ministério da Saúde é avançar nisso depois de recuperar as políticas que foram abandonadas – ou seja, reconstruir as políticas anteriormente existentes, para na sequência poder propor inovações e ampliações nas políticas.

A gente está num momento muito interessante de conversa com o Ministério da Saúde e com o Ministério das Cidades para nacionalizar esse projeto a partir das estruturas da saúde. Em vez de criarmos uma estrutura exclusiva de atendimento ao tema da habitação, queremos incluir a melhoria das moradias como mais um item na assistência à saúde das famílias. O conceito é atuar por dentro do sistema de saúde para poder “curar” a casa que deixa aquela família doente. Nós temos estudos bastante consistentes que comprovam que a economia que vai ser gerada no sistema de saúde é significativa. Reformar uma casa é muito mais barato do que tratar a doença de uma família, às vezes de maneira reincidente, porque a causa da doença não foi resolvida. Esse é o propósito, e a receptividade que a gente teve nos ministérios foi muito boa, porque as pessoas que estão lá são muito experientes também, inclusive nesse tema de atendimento relacionado a periferias e a moradias insalubres, inseguras.

A gente espera até o final do ano conseguir completar esse ciclo de elaboração da política para poder, no ano que vem, colocar em prática. Não sei se já de maneira nacional, mas os projetos iniciais estão aí para comprovar a viabilidade.

Houve uma formação específica para preparar os arquitetos para participarem do projeto? E que experiências esses profissionais colheram nele?

Do ponto de vista técnico, os arquitetos não precisaram de nenhuma formação, digamos, específica ou complementar, porque as intervenções são muito singelas. A construção de um banheiro ou de uma fossa é algo bastante simples e do domínio de qualquer profissional, mesmo que recém-formado.

O que a gente fez foi uma formação em políticas públicas, explicando as relações  com essas instituições dos municípios, da saúde, da assistência social, das secretarias de habitação, etc. Também discutimos sobre como trabalhar com esse cliente específico, a população de baixa renda, que na maioria das vezes, não tem escolhas – ela constrói do jeito que dá, com o material que tem, no lugar que é possível naquele momento. Poder oferecer para as famílias a possibilidade de escolher como querem resolver o seu problema, ter essa empatia e essa colaboração enquanto profissional na identificação da vontade do morador, é algo que foi muito destacado pelos colegas arquitetos que trabalharam com as famílias. As famílias ficam muito contentes de poder escolher a solução e trabalhar junto com os profissionais.

É muito importante comentar que esse é um trabalho remunerado. Ele não é voluntário, é uma política pública. Assim como médicos, enfermeiros, assistentes sociais, técnicos da área da saúde têm o seu emprego no SUS, contrato, salário, pagam as suas contas, a inclusão do arquiteto nessa lógica é exatamente da mesma maneira. Que sejam remunerados pelo seu trabalho! Nessa primeira rodada dos atendimentos do Nenhuma Casa Sem Banheiro, a remuneração está sendo por família atendida. Tem um pacote de ações que o arquiteto tem responsabilidade junto a essa família e esse conjunto gera uma remuneração por família.

Uma questão ressaltada pelo CAU/RS é a insuficiência das estatísticas oficiais sobre casas sem banheiro no Brasil. Elas teriam hoje uma dificuldade de identificar todos os casos – além de não abarcarem os domicílios com banheiros precários ou insuficientes. Como isso afetou o projeto?

O dado oficial que nós temos é o do IBGE. No caso aqui do Rio Grande do Sul, foram identificadas 11 mil famílias que não teriam banheiro, mas a gente sabe que esse número é muito superior. Nós temos um levantamento preliminar dque aponta que são 33 mil só na região metropolitana de Porto Alegre. É um número subestimado porque é um número autodeclarado, a família é que declara se tem banheiro ou não. Muitas vezes as famílias fazem um, ou seja, resolvem o problema do banheiro de forma precária, e manifestam que têm banheiro. Esse dado é um dado muito subdimensionado.

[Para o Nenhuma Casa Sem Banheiro], a gente tem feito aferições via saúde e assistência social dos municípios, que nos passam números mais fiéis e próximos da realidade. A gente tem trabalhado com esses números mais próximos da vivência das pessoas que estão no campo fazendo os atendimentos na área da saúde.

Entre os municípios atendidos pelo projeto, existe uma variação importante em termos de tamanho ou renda média? Você acha que houve uma diferença entre implantá-lo em municípios menores ou maiores, de menor ou maior renda?

O que a gente percebeu é que em cada cidade foi preciso um arranjo particular do ponto de vista institucional. Mas o modelo é muito semelhante e é replicável em cidades pequenas, grandes e médias. A gente não percebeu uma diferença no conceito. O caso de maior escala em que nós estamos trabalhando é o do município de Canoas, a maior cidade aqui da região metropolitana de Porto Alegre, onde 360 famílias são atendidas.

O que a gente fez foi desenhar uma maneira de atendimento. Nomeamos um coordenador geral, depois três coordenações setoriais, e cada coordenação setorial conta com um conjunto de arquitetos. Assim, a gente foi fazendo o atendimento das famílias e a padronização também dos procedimentos e documentos – a operação, digamos, administrativa e burocrática – de maneira a minimizar e acelerar esses processos. Então, eu te diria que não [houve diferença].

Nós temos condição hoje de trabalhar esse projeto em escala para grandes municípios e grandes populações, desde que a gente tenha as condições básicas garantidas para poder escalar esse projeto. Essa é a proposta, inclusive, que a gente está trabalhando com o Ministério da Saúde: replicar essa lógica na grande escala para enfrentar o problema de maneira mais consistente e resolver o problema dessas famílias no prazo mais curto possível.

Algumas das famílias contempladas pelo projeto têm uma particularidade que é a presença de pessoas com deficiência na casa. Além dessa, existe alguma outra característica que exigiu a construção de alguma adequação específica dos banheiros?

Essa foi uma diretriz de um dos municípios contemplados: atender prioritariamente famílias que têm PCD como moradores da casa. Em outros municípios, outro recorte que tivemos foi o de idosos, já que eles sofrem, além da precariedade da casa, com a questão dos acidentes domésticos e das quedas, ou seja, com a falta de acessibilidade e de segurança de locomoção. Poderiam haver outros, como, por exemplo, mulheres que são mães solteiras e cuidam dos filhos sozinhas, mas, até aqui, esses foram os principais recortes.

Já é possível traçar um balanço da experiência do Nenhuma Casa Sem Banheiro até aqui?

Penso que é um projeto que tem um êxito muito grande devido ao arranjo institucional que foi feito, mas também devido à extrema urgência e necessidade de enfrentar de maneira organizada esse problema, que vem sendo relegado há muito tempo. A gente tem uma avaliação de que os resultados, até o momento, são extremamente significativos e válidos. Eles nos permitem afirmar com tranquilidade que é possível ampliar o projeto para começar a trabalhá-lo em grande escala para o país inteiro, principalmente para as periferias das grandes cidades.

*Entrevista publicada originalmente no site Outra Saúde, em 23/8/2023.

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