Inez Padula em entrevista a Gabriel Brito, no PULSO
Em sua edição mais recente, o PULSO, programa de entrevistas do Outra Saúde em vídeo, recebeu Inez Padula. Médica de família e comunidade e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), ela comentou o 17º Congresso desta especialidade, realizado em Fortaleza, entre 20 e 23 de setembro, e explicou a importância e os desafios desta área na promoção da saúde no Brasil.
“O Congresso foi um marco na história, por ter sido o primeiro encontro presencial depois da pandemia e do governo Bolsonaro, e se insere nessa noção de esperança, do ‘esperançar’, verbo que marca a atual gestão da SBMFC”, refletiu Inez. “Queremos recuperar algumas políticas marcantes da saúde do povo brasileiro na Atenção Primária à Saúde (APS) através da Medicina de Família e Comunidade (MFC). A inovação deste congresso foi o elemento cultural associado à arte e cultura, uma com uma publicação resultante de observações feitas por participantes do Congresso, que trouxeram reflexões sobre o papel da arte na cura e promoção de saúde”, descreveu.
Para além do evento em si, momento onde centenas de trabalhos de pesquisa e mesas técnicas são reunidos no âmbito de interesse mais restrito aos profissionais da área, a conversa com Inez elucidou um pouco mais do papel social da MFC, especialidade que parece em alta na concepção das políticas públicas de saúde, dentro e fora do Brasil.
“Pode-se ir a outros especialistas em diversos momentos, ou se internar em hospital em algum momento, mas jamais perder o contato com a APS, porque são o médico de família e a equipe de saúde das unidades básicas que conhecem a pessoa, suas condições determinantes de saúde, vão à sua casa e assim podem prestar o mais oportuno cuidado. É a especialidade primordial da APS“, explicou. “Claro, é necessária uma equipe, o que no Brasil se expressa na Estratégia de Saúde da Família. É um modelo exitoso e vem servindo de inspiração para outros sistemas de saúde, até mais antigos, como os da Inglaterra e Canadá”.
Em sua visão, ainda falta avançar na valorização desta área da medicina, o que também passa por uma mudança cultural global. Como explica Inez, passamos décadas e até séculos a formular políticas de saúde em torno do cuidado hospitalar, mas ao longo do tempo tal modelo se mostrou caro e insuficiente para a totalidade das demandas das pessoas por saúde.
Além disso, como expressado no mercado e seus seguros, criou-se uma cultura de “consumo” de saúde, com um cardápio de serviços especializados que não necessariamente darão conta das necessidades reais e cotidianas da pessoa. Pois cuidar da saúde não passa apenas pela detecção e o tratamento da doença. Evitar a doença ou ao menos conhecer seu processo são partes essenciais daquilo que se chama de “longitudinalidade”, isto é, uma relação permanente entre profissionais de saúde e pacientes.
“Independentemente de classe social, as pessoas pensam que se puderem escolher diversos médicos especialistas terão melhor condição de saúde. Mas a realidade não é essa. Sabemos que quando vamos a especialistas sem a devida necessidade há grande risco de iatrogenia, isto é, ser afetado negativamente pelo olhar do profissional. Isso porque ele só está me vendo em um momento, não conhece minha história e só estará vendo uma parte do meu corpo, o que não necessariamente dará o melhor resultado. Quando vou ao especialista orientado pelo profissional que me conhece melhor a chance de uma ação negativa é menor, temos um encaminhamento mais assertivo”.
Nesse sentido, Inez Padula também discorreu um pouco do que seriam os papéis sociológicos e antropológicos do médico de família, dada sua inerente inserção no grupo social ao qual presta atendimento.
“Somos testemunha da vida da pessoa e seu meio. E precisamos ter respeito por isso. Quando entramos em suas casas não é para criticar, mas entender a complexidade de sua vida e como aqueles fatores influenciam no adoecimento. Doença não é algo que entra na gente. É sintoma de um processo. Desemprego, solidão, má alimentação… Por exemplo: o câncer. Está em ascensão no mundo, porque as pessoas estão se alimentando com comida de alto potencial cancerígeno. Assim, precisamos de educação em saúde. Posso encaminhar ao oncologista o mais rápido possível, mas a lógica é evitar que a pessoa não tenha a doença. O que a MFC e a equipe de saúde farão é atuar em ações educativas, inclusive com a família e a comunidade, não só o paciente. E poderia citar exemplos semelhantes sobre depressão, risco de suicídio, insônia, hipertensão, diabetes. Todos esses adoecimentos têm uma carga de eventos que conduzem a eles. Saúde não é ausência de doença, e sim uma vida plena, com sentido”.
E o fato de vivermos em sociedades de consumo, pautadas pela lógica de reprodução capitalista, colocam a necessidade de valorização do médico de família e da medicina de caráter preventivo na ordem do dia. Apesar de sua ascensão em termos de reconhecimento social e público, ainda estamos sob tempos neoliberais. Orçamentos públicos, investimentos em serviços de saúde e valorização de trabalhadores seguem a enfrentar barreiras políticas e ideológicas que podem limitar todo seu potencial de promoção de bem estar.
Dessa forma, corre-se o risco, conforme abordado no próprio Congresso, de se perder o médico de família, dentre outros profissionais de saúde, para o setor privado, de olho na reprodução de certos conceitos da atenção primária. Em tempos de alegada crise financeira da saúde suplementar, diminuir esse “consumismo” em saúde passa a ser, ironicamente, do interesse dos próprios capitalistas do setor.
“A atenção primária em saúde e a medicina de família e comunidade precisam ser resolutivas. Elas promovem saúde, cuidam de 8 em 10 queixas das pessoas que acodem, de maneira que precisam ter acesso a exames de sintomas e doenças mais prevalentes. O profissional precisa de bons contratos de trabalho, senão vai sair mesmo. Para mal ou bem, os seguros de saúde ofertam boas possibilidades, embora não conheça plano que ofereça a mesma integralidade do SUS e o MFC no mercado tenha atuação limitada. Mas é uma pena, uma perda, pois saúde não deve ser entendida como gasto, e sim como investimento. E nisso os governos estaduais e municipais tem grande responsabilidade”, sintetiza.
Por Gabriel Brito, entrevista publicada no site Outra Saúde, em 2/10/2023.