A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) está fazendo uma avaliação de sua regulamentação dos produtos de Cannabis, em vigor desde 2010. Para isso, foi produzido um relatório de Análise de Impacto da atual norma, que agora está sendo apreciado pelos conselheiros da autarquia. A conclusão a que se chegou no documento é que a regra deve ser mantida, com algumas pequenas correções ou aumentos. Ou seja, nenhuma grande mudança deve ser feita neste aspecto.
A Anvisa reconhece que não é possível restringir os produtos medicinais de Cannabis à regulamentação para medicamentos, já que se trata de uma planta de domínio popular, que pode ser facilmente transformada em extratos e outros produtos de uso terapêutico.
Está evidente que no Brasil, como em diversos outros países, a penetração do uso terapêutico de produtos de maconha é cada vez mais ampla e se dissemina em velocidade acelerada. Grande parte desse movimento ocorre justamente através dos produtos de produção popular, sem qualquer regulamentação ou controle das vigilâncias sanitárias – muitas vezes, eles são comercializados como suplementos alimentares, por exemplo.
Já são mais de cinquenta países no mundo com alguma regulamentação para o uso terapêutico da Cannabis. Aqui no Brasil, a Anvisa optou por criar uma categoria própria e única: os produtos de Cannabis para uso medicinal. Eles não têm o nível de regulamentação dos medicamentos e nem seu padrão de produção, pois são extratos de uma planta, com sua variabilidade natural, sua múltipla composição e uma ausência de estudos de padrão suficientes para garantir a eficácia e a segurança exigidas para o registro de medicamentos.
Existe hoje, no Brasil, apenas um medicamento registrado e comercializado com princípios ativos da maconha, além de vários produtos de Cannabis com autorização para compra em farmácia ou para importação.
Milhares de pacientes excluídos da regulamentação
A Anvisa identifica que cerca de 250 mil pacientes são atendidos hoje no país por estas vias autorizadas e regulamentadas. A maioria por importação, que sempre foi a via mais facilitada pela agência, apesar de hoje os produtos de Cannabis já estarem disponíveis em farmácias na maior parte dos estados brasileiros.
Contudo, a agência reconhece também que há todo um outro contingente de pacientes que são atendidos por cultivo próprio e, principalmente, através das associações e de produtores independentes, não normatizados pela Anvisa ou por qualquer outro poder regulador no país.
O relatório da agência não informa, mas nós que trabalhamos na área podemos estimar que o número de pessoas atendidas por estas vias não regulamentadas – com ou sem autorização judicial – é pelo menos igual e provavelmente muito maior do que os 250 mil atendidos pelas vias oficiais.
Infelizmente, o relatório simplesmente ignora esta realidade e não tem qualquer perspectiva de como lidar com este universo de produtores e pacientes de produtos terapêuticos de Cannabis que, no entanto, segue em crescimento exponencial no país.
No que o relatório avança
A boa nova é que o objetivo principal proposto pelo relatório é a facilitação e ampliação do acesso aos tratamentos e à pesquisa com produtos de Cannabis no Brasil. Estariam cobertas tanto as pesquisas voltadas para a regulamentação de medicamentos quanto as pesquisas capazes de dar sustentação à regulamentação de produtos de Cannabis em geral, de padrão regulatório distinto dos medicamentos.
O documento da Anvisa ressalta a oportunidade e a viabilidade do uso de dados da vida real, de de bancos de dados secundários e de registros de acompanhamento de pacientes, por exemplo, como fontes de informação para a pesquisa na área. Esses materiais poderiam contribuir para a identificação de efetividade, segurança e indicações de uso dos produtos de Cannabis em geral.
Este reconhecimento é de fundamental importância para o avanço do conhecimento na área. Obviamente, grande parte dos produtos jamais terá a classificação de medicamento. No entanto, nem por isso devem deixar de ser alvo de avaliação científica. Esta é uma tarefa que todos os que atuam na área devem assumir como grande prioridade e dever de ofício, especialmente as associações que hoje levantam milhões de reais por mês, vendendo produtos de maconha no nosso país
Proibicionismo segue em vigor
Por fim, chama a atenção o fato de não haver uma palavra sequer sobre a questão da proibição dos princípios ativos da maconha, especialmente o THC, o principal componente ativo da planta, como droga ilícita. Esta omissão é quase esquizofrênica: é como se o mundo da maconha medicinal não fosse também o mundo da maconha criminal.
Todo o conteúdo do relatório, enfim, indica que no fim das contas, mesmo com alguma facilitação para a realização de pesquisas e acesso aos produtos, continuaremos com a mesma situação em que milhões são alijados de possibilidades de tratamento muito mais seguras do que os medicamentos prescritos em geral.
Por causa disso é que a Justiça, e não o setor de saúde, tem se tornado um fórum para garantir o direito de produção e de acesso aos produtos de maconha. Enquanto alguns ganham bilhões, outros, ao mesmo tempo e por fazerem as mesmas coisas, enfrentam a perseguição policial e a cadeia.
Neste aspecto, ao contrário de seu propósito geral, o relatório da Anvisa infelizmente contribui ainda mais com a situação de insegurança e de perseguição que existe na área. O documento dificulta o acesso e o tratamento de milhares de pessoas ao propor a inclusão de uma contraindicação de uso por menores de 18 anos, gestantes e lactantes nos produtos contendo THC em concentração acima de 0,2% em relação ao insumo ativo.
Esta é uma decisão sem qualquer base científica que apenas mostra que, em uma espécie de esquizofrenia, a regulamentação do uso medicinal da maconha ainda se curva aos preconceitos da doutrina proibicionista e de Guerra às Drogas que produz tanto mal e tantas mortes.
Por Paulo Fleury Teixeira*, texto de opinião publicado originalmente no site Outra Saúde, em 20/5/2024.