RESUMO
Este artigo apresenta uma proposta de formação assertiva de profissionais de enfermagem ancorada na integração de saberes restaurativos, integrativos e sistêmicos. A partir dos fundamentos da enfermagem psiquiátrica de Mary C. Townsend, da justiça restaurativa de Kay Pranis, Howard Zehr e Adalberto Barreto, e das constelações familiares de Bert Hellinger, delineamos um modelo de cuidado voltado à promoção da saúde integral e à humanização das práticas de cuidado em contextos institucionais, familiares e comunitários. A metodologia adotada baseia-se em experiências do Programa de Gerenciamento e Controle de Casos, com uso da Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE), práticas integrativas e sensoriais, além de critérios clínico-sistêmicos para aplicação das constelações. O estudo articula teoria e prática, propondo uma enfermagem que cuida das raízes invisíveis do sofrimento humano.
Palavras-chave: enfermagem; práticas integrativas; justiça restaurativa; constelação familiar; cuidado sistêmico.
ABSTRACT
This paper presents a proposal for assertive training of nursing professionals anchored in the integration of restorative, integrative, and systemic knowledge. Based on the foundations of psychiatric nursing by Mary C. Townsend, restorative justice by Kay Pranis, Howard Zehr, and Adalberto Barreto, and the family constellations of Bert Hellinger, we outline a model of care aimed at promoting comprehensive health and humanizing care practices in institutional, family, and community contexts. The adopted methodology is based on the experiences from the Case Management and Control Program, applying the Nursing Process (SAE), integrative and sensory practices, as well as clinical-systemic criteria for the use of family constellations. The study connects theory and practice, proposing a nursing approach that addresses the invisible roots of human suffering.
Keywords: nursing; integrative practices; restorative justice; family constellation; systemic care.
1. INTRODUÇÃO
A prática da enfermagem, desde sua origem moderna com Florence Nightingale, tem se estruturado como um campo científico, técnico e ético dedicado ao cuidado do ser humano em sua integralidade. Contudo, ao longo do século XX e início do XXI, observa-se uma hegemonia da racionalidade biomédica, marcada por fragmentação do saber, padronização dos procedimentos e invisibilização das dimensões subjetivas, relacionais e espirituais do adoecimento. Essa lógica reducionista, ainda predominante em muitos serviços de saúde, revela-se insuficiente diante da complexidade das demandas que emergem de contextos sociais atravessados por desigualdade, violência, sofrimento psíquico e rupturas nos vínculos familiares e comunitários.
A partir da década de 1970, movimentos de reforma sanitária e de saúde coletiva no Brasil começaram a reivindicar uma prática de saúde ampliada, que levasse em conta os determinantes sociais, a participação popular e os saberes plurais. A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), nos anos 1990, institucionalizou essa perspectiva, ao mesmo tempo em que abriu espaço para o reconhecimento de práticas integrativas, comunitárias e ancestrais no cuidado em saúde. No entanto, mesmo com avanços como a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), a enfermagem ainda carece de formações estruturadas que capacitem os profissionais a lidar com as dimensões invisíveis, emocionais e sistêmicas que atravessam o sofrimento humano.
É neste contexto que se insere a proposta deste artigo: apresentar uma abordagem de formação assertiva em enfermagem, fundamentada na integração entre justiça restaurativa, práticas integrativas e abordagem sistêmica. Trata-se de um modelo que compreende o cuidado como um processo relacional, sensorial e simbólico — onde o enfermeiro atua não apenas como executor de técnicas, mas como facilitador de reconciliações internas e externas, acolhendo a dor do outro sem julgamentos e promovendo a restauração de vínculos rompidos.
A proposta aqui descrita se ancora nos referenciais da enfermagem psiquiátrica e relacional de Mary C. Townsend, nos fundamentos da justiça restaurativa conforme elaborados por Howard Zehr e Kay Pranis, nas tecnologias comunitárias de Adalberto Barreto e nos princípios fenomenológicos da Constelação Familiar de Bert Hellinger. Esses saberes são articulados à prática clínica e sistêmica desenvolvida no município de Santa Cruz Cabrália – BA, dentro do Programa de Gerenciamento e Controle de Casos, que acompanha vítimas e agressores em situação de violência, articulando-se ao CEJUSC e à rede de saúde pública.
Esta proposta responde a uma necessidade urgente: oferecer à enfermagem ferramentas éticas, sensíveis e eficazes para lidar com o sofrimento que não se expressa apenas no corpo, mas nas histórias familiares, nos traumas transgeracionais e nos sistemas sociais adoecidos. Ao integrar o cuidado sistêmico às práticas clínicas da enfermagem, busca-se não apenas tratar sintomas, mas restaurar dignidades, resgatar pertencimentos e sustentar processos de cura com base no amor, na escuta e na reconexão com a vida.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A construção de um cuidado de enfermagem restaurativo, integrativo e sistêmico exige a travessia de paradigmas — da hegemonia biomédica fragmentada para uma ontologia relacional e intersubjetiva do cuidado. Essa travessia não é meramente teórica, mas existencial e ética, pois exige reposicionar o profissional de enfermagem como presença terapêutica que reconhece o outro em sua totalidade, em suas dores, vínculos, exclusões e pertencimentos.
2.1 A Enfermagem como Cuidado Relacional e Integral
A enfermagem, como prática social e ciência aplicada, está historicamente situada entre o técnico e o humano, entre o saber objetivo e a sensibilidade do encontro. Mary C. Townsend, referência mundial na enfermagem psiquiátrica, contribui com uma visão ampliada do cuidado, sustentada por princípios como empatia, escuta terapêutica, comunicação não violenta e consciência de si. Em sua obra, Townsend defende que o enfermeiro é um instrumento relacional que atua não apenas no manejo de sintomas, mas no acolhimento da subjetividade e das narrativas que acompanham o sofrimento psíquico.
2.2 A Justiça Restaurativa como Epistemologia do Encontro
A justiça restaurativa, inicialmente desenvolvida no campo jurídico por Howard Zehr, propõe uma mudança de lente: do foco na punição para a centralidade da responsabilização e da restauração das relações. Kay Pranis, por sua vez, desenvolve a prática dos círculos restaurativos como espaço de escuta, verdade e reconexão comunitária. Tais práticas convergem com a enfermagem naquilo que ambas compartilham: a crença de que curar é reconectar — consigo, com o outro e com a comunidade.
Essa perspectiva é ampliada na Terapia Comunitária Integrativa de Adalberto Barreto, que rompe com modelos clínicos hierárquicos e aposta na sabedoria coletiva, na potência da escuta horizontal e na valorização das histórias de vida como campo terapêutico. Barreto enfatiza a ética do cuidado em contextos de sofrimento social, propondo que o terapeuta (ou o enfermeiro) não salva, mas sustenta: cria espaços de pertencimento e expressão.
2.3 A Abordagem Sistêmica: Cuidar das Ordens Invisíveis
A abordagem sistêmica da saúde, inspirada nas constelações familiares de Bert Hellinger, contribui com um olhar profundo sobre os sofrimentos que não são individuais, mas transgeracionais e vinculares. Hellinger propõe que muitas das dores psíquicas e comportamentos disfuncionais estão ligados a emaranhamentos inconscientes com destinos familiares não elaborados — exclusões, traumas, lealdades ocultas.
A partir do que Hellinger chamou de “ordens do amor” — pertencimento, hierarquia e equilíbrio —, torna-se possível compreender que certos sintomas somáticos, adoecimentos cíclicos ou comportamentos autodestrutivos podem ser expressões de um sistema clamando por reconhecimento e reintegração. A constelação familiar, nesse contexto, não é psicoterapia nem espiritualidade no sentido religioso, mas um método fenomenológico de percepção do campo relacional.
2.4 A Prática Integrativa e a Epistemologia da Sensação
O que une essas diversas abordagens — psiquiátrica relacional, restaurativa e sistêmica — é o reconhecimento de que o cuidado não se dá apenas por meio do raciocínio clínico, mas pela sensação, intuição, presença e escuta corporal. Essa epistemologia da sensação é o que sustenta o uso criterioso de práticas como a imposição de mãos, os florais de Bach (sob abordagem arquetípica, como proposto por Henrique Vieira Filho), a meditação, a escuta ativa e as constelações sistêmicas.
A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), instituída no SUS em 2006 e expandida nos últimos anos, reconhece a legitimidade dessas práticas como tecnologias de cuidado leve, baseadas em vínculos, subjetividades e saberes plurais. No entanto, ainda faltam formações sistematizadas que articulem essas práticas com a ciência da enfermagem, o que justifica a relevância do presente trabalho.
2.5 A Emergência de um Novo Paradigma na Enfermagem Brasileira
Nos últimos cinco anos, diversos pesquisadores brasileiros têm contribuído para esse movimento de transição paradigmática. Reginaldo Martins da Silva e Katy Conceição Domingues, em trabalhos apresentados no Congresso Brasileiro de Enfermagem (CBCENF), relatam experiências de constelação familiar como estratégia de cuidado e prevenção de violência. Eleine Aparecida Penha Martins e Amauri de Carvalho analisam a postura fenomenológica do enfermeiro diante do sofrimento em urgências e emergências, enquanto Ângela Xavier sistematiza a integração da enfermagem com práticas como Reiki e constelação familiar, ampliando o repertório terapêutico do cuidado.
Internacionalmente, autores como Joan Garriga, Bahira Trask e Rosemary Carrillo reforçam que a saúde não pode ser compreendida isoladamente do contexto relacional e familiar. Garriga, por exemplo, destaca o impacto dos vínculos primários na formação da identidade emocional; Carrillo explora modelos de cuidados familiares em contextos latino-americanos, dialogando com a cultura da coletividade e do cuidado compartilhado.
3. OBJETIVOS, JUSTIFICATIVA E HIPÓTESE
3.1 Objetivo Geral
Propor e refletir um modelo de formação assertiva em enfermagem, com base em uma abordagem restaurativa, integrativa e sistêmica, que articule a Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE) com práticas integrativas e complementares em saúde (PICS), justiça restaurativa e constelação familiar sistêmica, no contexto do cuidado a pessoas em situação de vulnerabilidade psicossocial e violência.
3.2 Objetivos Específicos
Compreender os limites e possibilidades da prática da enfermagem convencional diante de situações complexas de sofrimento psíquico, familiar e comunitário;
Sistematizar experiências clínicas e comunitárias que integrem práticas restaurativas e sistêmicas no cuidado de enfermagem;
Identificar critérios clínicos, relacionais e sensoriais para a utilização da constelação familiar sistêmica como tecnologia de cuidado no SUS;
Validar a aplicabilidade da SAE como instrumento técnico de sustentação e registro ético do cuidado ampliado;
Analisar os efeitos subjetivos e relacionais da abordagem proposta sobre pacientes, profissionais de saúde e familiares.
3.3 Justificativa
Este artigo nasce da vivência concreta no campo do cuidado em saúde pública, onde a racionalidade técnica da enfermagem frequentemente se revela impotente diante da complexidade humana. Dores psíquicas crônicas, comportamentos autodestrutivos, repetição de ciclos de violência familiar, adoecimento de profissionais por esgotamento — todas essas situações ultrapassam os limites do cuidado linear, pedindo um modelo mais profundo, relacional e espiritualizado de atenção.
No Brasil, a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), desde 2006, legitima práticas como meditação, imposição de mãos, auriculoterapia, terapia comunitária integrativa e outras tecnologias do cuidado leve. No entanto, a formação em enfermagem ainda permanece distante dessas práticas, e os poucos profissionais que as utilizam frequentemente o fazem à margem dos protocolos e com escassa validação institucional.
Ademais, o cenário de violência urbana e doméstica demanda novas epistemologias restaurativas que sejam capazes de sustentar o sofrimento, sem reproduzir punições, medicalizações excessivas ou patologizações de comportamentos. A justiça restaurativa, já aplicada nos CEJUSCs, tem se mostrado uma via promissora de reintegração e responsabilização afetiva. A articulação da enfermagem com esse campo, embora recente, é promissora e urgente.
Por fim, a abordagem sistêmica e fenomenológica da constelação familiar tem sido incorporada em experiências de enfermagem de forma ainda incipiente, mas com resultados significativos em termos de alívio emocional, reconexão familiar e reorganização interna. A escassez de produção científica sobre essa articulação é um dos principais motivadores deste estudo: contribuir com a sistematização, legitimação e expansão ética de um novo paradigma de cuidado.
3.4 Hipótese
Se a enfermagem incorporar, de maneira ética, técnica e crítica, as práticas restaurativas, integrativas e sistêmicas ao seu processo formativo e assistencial, será possível promover cuidados mais efetivos, humanizados e transformadores, especialmente no atendimento a populações em situação de sofrimento relacional, emocional e psicossocial.
4. METODOLOGIA
4.1 Tipo de Estudo
Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, com abordagem fenomenológica e caráter descritivo-analítico, fundamentado em um relato de experiência crítica, baseado na atuação do autor como enfermeiro clínico e sistêmico no município de Santa Cruz Cabrália – BA, entre os anos de 2019 e 2025. O percurso metodológico está sustentado na articulação entre saberes teóricos e práticas integradas no cuidado a pessoas envolvidas em situações de violência, vulnerabilidade psíquica e rupturas familiares.
Este estudo está orientado pelos princípios da pesquisa fenomenológica-hermenêutica, conforme preconizado por Martin Heidegger e ampliado por autores da saúde coletiva e da educação libertadora (como Paulo Freire e Gaston Bachelard), privilegiando a compreensão do vivido, da linguagem simbólica e do contexto relacional como fontes legítimas de produção de conhecimento.
4.2 Contexto Institucional e Campo de Atuação
O estudo foi realizado no âmbito do Programa de Gerenciamento e Controle de Casos vinculado ao CEJUSC (Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania) da Comarca de Santa Cruz Cabrália, em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde e com a rede de proteção social. As ações foram desenvolvidas principalmente no Ambulatório de Especialidades – Extensão CEJUSC, com foco no acompanhamento integral de indivíduos (adultos, jovens e famílias) que se encontravam em situação de conflito familiar, violência doméstica, dependência emocional, reincidência de padrões agressivos e/ou sofrimento psíquico persistente.
4.3 Procedimentos Metodológicos
4.3.1 Acolhimento Integrativo
Todo o processo iniciava-se com uma consulta de acolhimento sistêmico, conduzida sob os princípios da escuta restaurativa e da comunicação terapêutica da enfermagem. Utilizava-se uma escuta aberta, compassiva, com observação dos campos emocionais, expressões somáticas, linguagem simbólica e padrões narrativos repetitivos.
Foram utilizadas práticas integrativas e expressivas durante o acolhimento, como:
Respiração consciente;
Escrita intuitiva;
Automassagem;
Imposição de mãos;
Prescrição de florais de Bach conforme o campo emocional (baseado na leitura arquetípica de Henrique Vieira Filho);
Rodas breves de cura com meditações e visualizações.
4.3.2 Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE)
Após a escuta, aplicava-se a SAE com as etapas previstas:
Coleta de dados: focada no histórico familiar, eventos traumáticos, espiritualidade, vínculos afetivos e rede de suporte;
Diagnóstico de enfermagem (NANDA-I): com ênfase em diagnósticos como:
Ansiedade
Luto complicado
Violência autodirigida
Baixa autoestima situacional
Planejamento e intervenções (NIC):
Enfrentamento espiritual
Estabelecimento de presença terapêutica
Cuidados com o cuidador
Resultados esperados (NOC):
Espiritualidade pessoal
Controle do estresse
Reconciliação familiar (customizado no prontuário sistêmico)
4.3.3 Pasta de Gerenciamento e Critérios de Constelação
Foi criada uma pasta de acompanhamento sistêmico, onde cada caso era classificado de acordo com os seguintes critérios:
Grau de vinculação terapêutica;
Grau de entrega emocional e sensorial;
Capacidade de presença no corpo (não dissociação);
Repetição narrativa sem acesso emocional (indicador de bloqueio);
Percepção clínica de prontidão para intervenção com constelação.
Casos que apresentavam rigidez narrativa, vitimização ou negação das raízes relacionais do sofrimento eram encaminhados para acompanhamento com outras PICS, como meditação, terapia floral, auriculoterapia e práticas comunitárias. A constelação era oferecida apenas quando o paciente demonstrava prontidão sensorial, entrega emocional e abertura para acessar o campo fenomenológico.
4.3.4 Constelações Familiares Sistêmicas
As constelações foram realizadas individualmente (com bonecos, âncoras ou papel) ou em pequenos grupos terapêuticos. Sempre precedidas de práticas de centramento e sustentadas por meditação ou silêncio profundo, respeitando a espiritualidade pessoal do paciente. O objetivo não era a resolução imediata de conflitos, mas o início de um movimento interno, promovendo alívio emocional, reconhecimento de vínculos e mudança no campo relacional.
4.4 Ética e Registro Institucional
Todos os atendimentos foram realizados com consentimento informado verbal ou registrado nos prontuários sistêmicos, sendo respeitada a confidencialidade, o tempo de cada paciente e sua liberdade de escolha. Os prontuários foram arquivados de forma sigilosa em plataforma autorizada (FamilySearch) e em rede interna da secretaria.
O trabalho foi apresentado e aprovado pelos órgãos institucionais competentes (Prefeitura Municipal, CEJUSC, Secretaria de Saúde), mantendo-se fiel aos princípios bioéticos: beneficência, não maleficência, autonomia e justiça.
5. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados desta experiência não se expressam apenas em indicadores biométricos ou respostas lineares ao tratamento, mas em movimentos subjetivos, relacionais e espirituais que foram observados ao longo do acompanhamento dos pacientes e familiares inseridos no Programa de Gerenciamento e Controle de Casos. O que se viu foi a emergência de espaços de escuta, reconciliação e reconexão com a vida, que transformaram a prática de enfermagem em uma verdadeira experiência de cura.
5.1 Acolhimento que Restaura: A Escuta como Tecnologia Terapêutica
Desde a primeira consulta, o que se destacava era o impacto do acolhimento sistêmico como dispositivo restaurativo. Pacientes que chegavam com posturas defensivas, discurso repetitivo ou vitimizações crônicas foram, pouco a pouco, se abrindo ao sentir. Esse movimento não se deu por convencimento verbal, mas pela criação de um campo terapêutico seguro, silencioso e amoroso, onde o enfermeiro atuava como presença e não como autoridade.
O uso de práticas como imposição de mãos, respiração consciente e florais de Bach criou condições para que o corpo do paciente, muitas vezes anestesiado pelo trauma, voltasse a sentir e se reorganizar energeticamente. Com o tempo, isso favorecia a emergência de memórias, emoções congeladas e insights relacionais, elementos fundamentais para o cuidado integral.
5.2 O Critério da Prontidão: Por que nem todos foram constelados?
Um dos achados mais relevantes foi a constatação clínica de que nem todos os pacientes estão prontos para uma constelação familiar sistêmica. Muitos chegavam ainda fixados em narrativas de vitimização, buscando culpados, ou se recusando a acessar emocionalmente suas histórias. Para esses casos, as intervenções mais indicadas eram outras PICs — como terapia floral, meditação, auriculoterapia, escuta ativa, meditações e círculos de partilha.
A constelação só era realizada quando o paciente dava sinais claros de prontidão, como:
entrega emocional (choros espontâneos);
aceitação da responsabilidade por sua dor;
abertura à escuta fenomenológica;
disposição para sentir sem entender.
Essa postura está em sintonia com Hellinger (2005), que afirma que a constelação “não é para compreender, mas para permitir que algo se revele e seja incluído”. Portanto, a decisão de constelar era sempre clínica e fenomenológica, não padronizada.
5.3 Efeitos Sistêmicos: A Cura que Acontece Além do Sintoma
Os efeitos observados não se limitaram ao alívio de sintomas físicos ou emocionais, mas se estenderam ao campo relacional. Foram registrados casos de:
reconciliações familiares espontâneas após constelações (filhos retornando ao convívio com pais após anos de afastamento);
quebra de ciclos de violência doméstica com relato de regressão de comportamento agressivo após escuta e ressignificação de padrões transgeracionais;
alívio imediato de dores crônicas após liberação emocional em atendimentos com imposição de mãos;
mudanças no campo espiritual e sentido de vida, com relatos de sonhos transformadores e retomada de propósitos existenciais.
O mais importante, porém, não foi o “resultado em si”, mas a reabertura do fluxo da vida: pacientes que antes estavam paralisados por culpa, dor ou raiva passaram a caminhar com mais leveza, aceitando seus limites e responsabilidades com mais dignidade.
5.4 A Enfermagem como Guardiã do Vínculo
Esse processo revelou um papel fundamental do enfermeiro sistêmico: ser guardião do vínculo e do campo terapêutico. Em vez de buscar diagnósticos rápidos ou soluções imediatas, o profissional era treinado para sustentar processos, mesmo quando não havia “resposta”. Esse tipo de cuidado é profundamente restaurativo, pois oferece ao paciente a experiência de não ser julgado, apressado ou medicado de forma mecânica.
Essa postura está alinhada à ética do cuidado proposta por autores como Adalberto Barreto, Mary C. Townsend e Joan Halifax: o cuidado como presença, silêncio e amor. Como disse uma paciente após uma intervenção, em sala de espera com pics:
“Aqui eu não me sinto um caso. Aqui eu sinto que tenho alma.”
6. CONCLUSÃO
O presente estudo apresenta uma proposta inovadora de formação e prática em enfermagem, fundamentada na articulação entre a Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE), as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), os princípios da Justiça Restaurativa e a abordagem fenomenológica das Constelações Familiares Sistêmicas. Essa integração se revelou não apenas possível, mas profundamente necessária diante dos desafios contemporâneos enfrentados por profissionais da saúde pública em contextos marcados por violência, sofrimento emocional crônico e rupturas relacionais.
A experiência realizada em Santa Cruz Cabrália demonstra que a enfermagem, quando fortalecida por fundamentos éticos, escuta ativa e ferramentas sensoriais, torna-se um campo fértil para processos restaurativos profundos. O enfermeiro, ao ocupar o lugar de presença terapêutica — mais do que de executor de técnicas —, transforma-se em mediador do reencontro do paciente consigo mesmo, com sua história, com sua ancestralidade e com o fluxo da vida.
Ficou evidente que práticas como a constelação familiar não devem ser tratadas como modismos ou intervenções simplistas, mas como tecnologias complexas, baseadas em uma ética da inclusão e da responsabilidade sistêmica. Da mesma forma, foi possível constatar que tais práticas não se aplicam a todos os pacientes, e que o critério mais importante não é a gravidade do caso, mas a prontidão emocional e sensorial para acessar o campo fenomenológico.
Em um tempo de medicalização excessiva, fragmentação do cuidado e sobrecarga dos profissionais, este estudo reforça que a enfermagem restaurativa não é um luxo ou alternativa esotérica — mas sim uma resposta ética, científica e humana às demandas do nosso tempo. Cuidar do corpo, sim; mas também da alma, da família, das histórias esquecidas e das relações feridas.
O caminho da restauração não é fácil, nem rápido, mas é real. E a enfermagem pode — e deve — ser uma das guardiãs dessa travessia.
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