RESUMO
Este relato de experiência apresenta a trajetória do Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM) de Santa Cruz Cabrália, Bahia, entre 2018 e 2025. Destaca-se a singularidade deste equipamento como o único CRAM com recorte indígena do país, referência nacional e internacional no enfrentamento à violência contra mulheres, especialmente indígenas. A experiência articula práticas integrativas, fortalecimento da rede de proteção e inovação na gestão, consolidando uma política pública do cuidado pautada pela humanização e pelo protagonismo feminino.
Palavras-chave: CRAM; Violência de gênero; Mulheres indígenas; Políticas públicas; Práticas integrativas.
INTRODUÇÃO
O Brasil é um dos países com maior número de políticas públicas destinadas ao enfrentamento da violência contra a mulher, sendo a Lei Maria da Penha um dos marcos nesse processo. No entanto, os desafios persistem, especialmente no atendimento às especificidades de grupos vulnerabilizados, como as mulheres indígenas.
O Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM) de Santa Cruz Cabrália, implantado em 2018, destaca-se como o único CRAM com recorte indígena do país, atuando diretamente na proteção e no cuidado de mulheres em situação de violência, especialmente as pertencentes ao povo Pataxó.
Este relato objetiva apresentar a trajetória deste equipamento entre 2018 e 2025, destacando seus avanços, desafios e inovações, particularmente no contexto da articulação com práticas integrativas e complementares em saúde, além de processos formativos e políticos que consolidaram sua referência internacional.
METODOLOGIA
Trata-se de um relato de experiência, baseado:
nos registros institucionais do CRAM;
nas vivências diretas das autoras enquanto protagonistas do processo;
na análise documental das políticas públicas e dos marcos legais;
na transcrição da entrevista realizada com a coordenadora do CRAM, Kandara Pataxó, em maio de 2025, no contexto do Maio Restaurativo das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICs).
DESCRIÇÃO DA EXPERIÊNCIA
1. Implantação e Estruturação do CRAM (2018-2019)
A implantação do CRAM foi resultado da articulação da rede local de proteção social, mobilizando o poder público municipal, o sistema de justiça, lideranças comunitárias e organizações da sociedade civil.
Em 2019, o CRAM passou por um importante processo de fortalecimento interno, com a introdução das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICs) como ferramenta para o cuidado da equipe. Destaca-se a realização de uma Constelação Sistêmica do próprio equipamento, conduzida pelo Npics Brasil, promovendo a coesão do grupo e alinhamento institucional com princípios humanizados e sistêmicos.
2. Consolidação e Ampliação dos Serviços (2020-2022)
A partir de 2020, o CRAM consolidou-se como referência no extremo sul da Bahia, ampliando a oferta de serviços e estreitando a articulação com a rede de proteção, que inclui o CREAS, CRAS, Delegacia da Mulher, sistema de saúde e educação.
Dentre as ações de destaque:
Campanhas educativas e preventivas, como o tradicional Bloco “Respeito às Minas” no Carnaval, que alia cultura popular e enfrentamento à violência.
Participação ativa em eventos de formação e capacitação, com destaque para encontros organizados pelo Tribunal de Justiça da Bahia e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
3. Inovações e Práticas Integrativas (2023-2025)
A partir de 2023, houve uma intensificação das Práticas Integrativas e Complementares no cotidiano do CRAM, com foco não apenas na equipe, mas no atendimento direto às mulheres:
Grupos terapêuticos com foco em arteterapia.
Roda de práticas comunicativas e expressivas.
Fortalecimento dos saberes tradicionais indígenas como prática de cuidado.
Destaca-se o protagonismo de Kandara Pataxó no cenário nacional e internacional, com a participação na série documental “Mulheres Indígenas Biomas”, que teve gravações realizadas em Santa Cruz Cabrália e lançamento internacional previsto, com apoio de plataformas como Netflix e Amazon.
A participação de Kandara em eventos internacionais, como na Universidade de Columbia (EUA), projetou o modelo de gestão do CRAM como referência de inovação, humanização e interculturalidade.
RESULTADOS E IMPACTOS
Fortalecimento da rede local de enfrentamento à violência de gênero.
Ampliação dos atendimentos e da confiança da comunidade indígena no equipamento.
Consolidação do CRAM como modelo de prática interseccional e intercultural.
Reconhecimento nacional e internacional da atuação do CRAM.
Incorporação de práticas restaurativas e sistêmicas como rotina institucional.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1. Justiça Restaurativa e sua Interface com o CRAM
A prática do CRAM articula-se diretamente com os princípios da justiça restaurativa, que propõe uma abordagem alternativa ao modelo punitivo, centrada na reparação e na restauração das relações (ZEHR, 2014).
Howard Zehr (2014) define a justiça restaurativa como um processo que envolve todas as partes afetadas, promovendo a reparação dos danos e a transformação dos conflitos. No Brasil, autores como Pedro Scuro Neto (2015) e Ílison Santos (2016) defendem sua institucionalização como política pública, orientando práticas como as desenvolvidas no CRAM.
2. Constelações Sistêmicas e o Livro “Conflito e Paz”
As constelações familiares sistêmicas, elaboradas por Bert Hellinger (2013), oferecem uma abordagem fenomenológica para a compreensão dos conflitos humanos. No livro “Conflito e Paz”, Hellinger enfatiza a importância do acolhimento da realidade e da reconciliação como caminho para a paz.
O CRAM incorporou essa abordagem em 2019, com a constelação sistêmica do próprio equipamento, e passou a integrar práticas sistêmicas no acolhimento das mulheres em situação de violência.
3. Pesquisas Recentes sobre CRAMs no Brasil
A literatura recente destaca a atuação dos CRAMs como fundamental para a efetivação da Lei Maria da Penha, apontando desafios como a necessidade de práticas sensíveis à diversidade cultural.
Estudos como os de Silva e Santos (2021) ressaltam o papel dos CRAMs na prevenção e no empoderamento das mulheres. Outros autores, como Oliveira (2023), enfatizam a importância de práticas interseccionais no atendimento, especialmente às mulheres indígenas e quilombolas.
Além disso, pesquisas na Plataforma Brasil apontam a crescente adoção de Práticas Integrativas e Complementares em serviços de proteção, confirmando a vanguarda do CRAM de Cabrália neste campo (PEREIRA et al., 2022).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O CRAM de Santa Cruz Cabrália constitui-se como uma experiência exemplar de política pública humanizada, interseccional e sistêmica, que valoriza as epistemologias indígenas e incorpora práticas restaurativas e integrativas.
A trajetória do CRAM demonstra que políticas públicas inovadoras não se restringem à criação de novas estruturas, mas exigem mudanças de paradigma, como a que inspira o trabalho em Cabrália: o cuidado como eixo central da política pública.
REFERÊNCIAS
HELLINGER, Bert. Conflito e Paz. São Paulo: Cultrix, 2013.
ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa: Teoria e Prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2014.
SCURO NETO, Pedro. Justiça Restaurativa: fundamentos e aplicação. São Paulo: Saraiva, 2015.
SANTOS, Ílison. Justiça restaurativa: um novo modelo de política criminal. Conjur, 2016.
SILVA, Maria das Dores; SANTOS, Juliana Pereira. A atuação dos CRAMs na efetivação da Lei Maria da Penha. Revista de Políticas Públicas, v. 25, n. 3, 2021.
OLIVEIRA, Simone Aparecida. Atendimento interseccional em CRAMs. Cadernos de Serviço Social, v. 29, n. 2, 2023.
PEREIRA, Larissa et al. Práticas integrativas no atendimento a mulheres em situação de violência. Saúde & Sociedade, v. 31, n. 4, 2022.
Entrevista utilizada:
PATAXÓ, Kandara. Entrevista sobre a trajetória do CRAM de Santa Cruz Cabrália. [Recurso eletrônico]. Disponível em: https://www.instagram.com/reel/DJrbj4cO1Vx/. Acesso em: 30 maio 2025.
Forum Jutahy Fonseca, Santa Cruz Cabrália - BA, Brasil
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