A política de patentes farmacêuticas que nos faltou

Ex-diretora de Farmanguinhos aponta caminhos para superar dependência ainda são viáveis

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Um escrito de Eloan PinheiroAna Paula BrumKarin Brüning e Maria Fernanda Macedo, para a coluna Saúde não é mercadoria

Em 2002, Eloan Pinheiro, então diretora de Farmanguinhos/Fiocruz, juntamente com sua equipe composta por Ana Paula Brum, Karin Brüning e Maria Fernanda Macedo, elaborou o documento intitulado “Proposta de Ação Governamental para Investimento nas Áreas de Saúde, Ciência e Tecnologia Rumo ao Desenvolvimento Tecnológico de Medicamentos”.

Apesar do contexto histórico distinto, o texto mantém uma relevância e atualidade impressionante, oferecendo uma análise abrangente sobre os desafios do desenvolvimento tecnológico no setor farmacêutico brasileiro e suas implicações para o acesso a medicamentos. O documento aborda temas estruturais, como a integração dos diversos setores envolvidos no desenvolvimento de medicamentos, o fortalecimento da indústria farmoquímica nacional e as demandas do sistema público de saúde, além de discutir formas de mitigar os impactos do monopólio de patentes e propor ferramentas gerenciais para o avanço tecnológico.

No período subsequente à escrita do documento, em especial no segundo governo Lula, o Brasil chegou a dar maior prioridade à sua política de produção nacional de medicamentos, inclusive genéricos. Contudo, essa ênfase não foi acompanhada de uma política de propriedade intelectual mais ousada. Consequentemente, os problemas da dependência dos monopólios estrangeiros para a garantia dos fármacos de que o país precisa seguem presentes até hoje.

Além disso, o déficit na balança comercial da saúde continua crítico, com cerca de 90% dos insumos farmacêuticos ativos sendo importados.

Apesar de louvável, a política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde ainda não enfrenta adequadamente as barreiras impostas pela propriedade intelectual, nem implementa uma política de transparência e inteligência para assegurar preços justos para medicamentos e vacinas. Essas lacunas impactam diretamente o orçamento do SUS e pesam sobre as famílias brasileiras, perpetuando a vulnerabilidade do sistema de saúde nacional.

Apresentamos aqui o Capítulo 2 do documento, intitulado “Adotando uma política de Propriedade Industrial que reduza o impacto do monopólio estabelecido pela patente e propicie formas de negociação mais equilibradas com os detentores de know-how”, que traça o impacto da patente no desenvolvimento tecnológico e apresenta um histórico do fortalecimento da Propriedade Intelectual. (Susana van der Ploeg)


Adotando uma política de Propriedade Industrial que reduza o impacto do monopólio estabelecido pela patente e propicie formas de negociação mais equilibradas com os detentores de know-how

DÉCADAS DE 60 E 70: A maioria dos países desenvolvidos fortaleceram a sua capacidade industrial em áreas importantes e, ao mesmo tempo, excluíram temporariamente de proteção produtos e processos em setores estratégicos, como por exemplo o de medicamentos. Assim foi na França, que passou a conceder patente para medicamentos em 1960, na Alemanha e na Holanda em 1968, no Japão em 1976 e na Itália em 1978. Esses países julgaram conveniente primeiramente capacitar suas indústrias farmoquímicas e farmacêuticas, para depois passarem a reconhecer patente nessas áreas.

O Brasil, em 1971 (Lei 5.772/71 de 21/12/71), decidiu excluir de proteção medicamentos, alimentos e produtos químicos. Essa política deveria visar o aumento da concorrência, dificultando o estabelecimento de monopólio que é característico da patente. No entanto, essa política de caráter legal não teve efeito pois não foi acompanhada de ações de fortalecimento de P&D e da indústria objetivando a produção local, como fizeram os países desenvolvidos que aplicaram esse mesmo modelo.

DÉCADA DE 80: No plano internacional, a partir da década de 80, os países desenvolvidos, liderados pelos Estados Unidos da América, passaram a adotar medidas restritivas aos países em desenvolvimento, tais como Brasil, Índia, China e outros que não concediam patente em áreas julgadas estratégicas. Os Estados Unidos tinham como arma a “Super 301” que possibilitava a aplicação unilateral de sanções comerciais contra os países que “prejudicassem os interesses de indústrias americanas” no seu território.

Concomitantemente, insatisfeitos com a falta de “eficácia punitiva” da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), os países desenvolvidos impuseram a introdução do assunto “Propriedade Intelectual” nas discussões, iniciadas em setembro de 1986, da Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (General Agreement on Tariffs and Trade – GATT). A maior pressão foi exercida pelos Estados Unidos da América do Norte.

Não por acaso, no final de 1988, no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), a diretoria de patentes iniciou as primeiras discussões de mudança do Código de Propriedade Industrial (Lei 5.772/71) no sentido de adaptar a legislação de Propriedade Industrial às “diretrizes ditadas pela Rodada Uruguai do GATT”.

DÉCADA DE 90 E ATUAL: A proposta preparada, em grande parte, no INPI, serviu de base para o “Projeto de Lei” que, em março de 1990, foi enviado, em regime de urgência urgentíssima, pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional. Esse Projeto de Lei modificava radicalmente a Lei 5.772/71 e permitia o patenteamento de todo o tipo de criação, independente da área tecnológica em que ocorresse. Na verdade, essa primeira versão continha concessões muito mais abrangentes do que as que constaram do texto final do TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), assinado em abril de 1994 e que entrou em vigor, no Brasil, em 1º de janeiro de 1995.

No entanto, a manifestação de diversas entidades da Sociedade impediu a aprovação extemporânea de tal legislação e somente em 14 de maio de 1996 foi sancionada a Lei 9.279/96 em substituição à Lei 5.772/71. Diversos dispositivos da atual Lei de Propriedade Industrial são reconhecidos como impeditivos para o acesso da população aos medicamentos. No entanto, alguns outros dispositivos ainda permitem uma bem planejada reação contra o poder exacerbado dos proprietários de patentes de farmoquímicos e de medicamentos, tal como a licença compulsória por interesse público ou por falta de produção local.

Deve ser ressaltado que não só o Brasil mas todos os países em desenvolvimento e os menos desenvolvidos sentiram os efeitos do tratamento “globalizado” da Propriedade Intelectual. A deterioração da qualidade de vida, a que chegaram tais países, só foi mostrada, em sua plenitude, quando ficou evidente o drama dos povos da África subsaariana pela disseminação da AIDS em consequência da falta de acesso dos pacientes ao tratamento, resultante dos elevados preços praticados pelas empresas detentoras de patentes de medicamentos. Esse lamentável quadro pôs por terra as expectativas do Banco Mundial que projetou, entre 1993 e meados de 1994 (Ata final da Rodada Uruguai), um ganho no bem estar e negócios entre as nações de 250 bilhões de dólares por ano para 500 bilhões.

A situação atual [2003] é a de um movimento de reação dos países em desenvolvimento e os menos desenvolvidos no sentido de colocar “a saúde pública acima dos interesses dos proprietários das patentes”. A Declaração de Doha, assinada por muitos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos, é um primeiro passo nessa difícil trajetória em direção ao equilíbrio entre os direitos de quem investe em P&D e os do alvo desse investimento, no caso de medicamentos – os pacientes.

Mas, a melhoria das condições de vida das populações dos países em desenvolvimento só será possível pelo acesso a bens essenciais (alimentos, medicamentos, moradia e educação). A produção de tais bens depende da capacidade dos países praticarem, em nível razoável, P&D e inovação.

No entanto, algumas premissas não podem ser esquecidas:

  • Ninguém inova se não souber fazer o que já existe;
  • Não se pode valorar a produção de uma mercadoria que não se sabe fazer;
  • As mercadorias destinadas à saúde exigem mais conhecimento do que o ato de produzir uma substância ou objeto, ou seja, são necessários conhecimentos que não são revelados em patentes;
  • O setor privado não tem compromisso com o bem-estar social e, por isso, não tem interesse em investir em medicamentos para doenças negligenciadas que não darão o retorno financeiro visado pelos empresários;
  • O setor público não é autossuficiente para processar, por completo, o desenvolvimento, produção e colocação no mercado de medicamentos novos ou obtidos por engenharia reversa, não só pela falta de recursos financeiros para essa empreitada, como também pela falta de conhecimento do processo industrial.

Patentes, Know-how e desenvolvimento tecnológico

O primeiro passo do desenvolvimento tecnológico, seja na engenharia reversa seja na inovação, é o levantamento de todas as informações relacionadas ao produto ou processo visado. No campo de medicamentos, tais informações incluem:

  • Na engenharia reversa:
  • Verificação se o produto, processo ou formulação está patenteado no Brasil;
  • Busca de todas as informações sobre rotas de síntese, processos de obtenção (fermentação, extração, técnica de DNA recombinante) e de purificação para agilizar o desenvolvimento em escala de bancada;
  • Levantamento das informações relativas às exigências de pureza, toxicidade, farmacologia, biodisponibilidade, etc. das substâncias componentes do medicamento, bem como dos procedimentos BPF (Boas Práticas de Fabricação) e BPL (Boas Práticas de Laboratório);
  • Levantamento das informações de oportunidade de negócios (preços do produto acabado, matéria-prima, princípios ativos e demais insumos, tamanho do mercado) e de instituições/empresas capacitadas em metodologia analítica e na realização de estudos pré-clínicos e clínicos e no escalonamento de processos.
  • Na inovação:
  • Busca de todas as informações sobre substâncias e rotas de síntese, processos de obtenção (fermentação, extração, técnica de DNA recombinante) e de purificação para o estabelecimento da linha de pesquisa a ser seguida;
  • Levantamento das informações relativas aos produtos já existentes para determinação das características a serem melhoradas pela possível invenção;
  • Levantamento das informações sobre indústrias capacitadas em escalonamento de processos, para possível formação de parceria, e de instituições/empresas capazes de realizar screening de alvos e estudos pré-clínicos e clínicos, para que as atividades de P&D não sofram solução de continuidade.

Fica, portanto, evidente que o conhecimento dos princípios que regem a Propriedade Industrial, especialmente patentes e informações confidenciais, é fundamental para se traçar a estratégia do Desenvolvimento Tecnológico selecionado como prioritário. De fato, as possibilidades diferem significativamente quando existe ou não patente, no País, para o princípio ativo, ou para a formulação ou para o processo de obtenção de um ou outro.

Na caso do fármaco (princípio ativo) ou da formulação (medicamento) estar patenteado no País, duas situações podem ocorrer: (1) Fármaco patenteado e (2) Formulação patenteada.

  1. Fármaco patenteado:

Este é o evento mais restritivo pois o poder de monopólio da substância se estende a qualquer formulação onde ela estiver presente. Até mesmo se for desenvolvido um aperfeiçoamento no processo de obtenção, a utilização de tal processo fica condicionada à autorização do proprietário da patente da substância.

No entanto, a Lei 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial) contém disposições que limitam de alguma forma o poder do titular da patente. Uma delas é a obrigatoriedade do titular fabricar localmente o produto patenteado (Art. 68, § 1º) dentro do prazo de três anos contados da concessão da patente (Art. 68, § 5º), sob pena de ter a sua patente licenciada compulsoriamente. O licenciamento compulsório também pode ocorrer, a qualquer tempo, nos casos de emergência nacional ou interesse público (Art. 71).

Assim, se o fármaco patenteado não estiver sendo produzido no Brasil pela empresa detentora da patente, o licenciamento pode ocorrer de forma voluntária, através de negociação entre o interessado em produzir o fármaco e o titular da patente, ou de forma compulsória, através de concessão governamental.

  1. Formulação patenteada:

Quando uma formulação estiver patenteada no País, mas o fármaco não estiver, duas situações podem ocorrer. Na primeira, o Desenvolvimento Tecnológico de uma formulação diferente daquela que está patenteada pode ser a solução para evitar as restrições impostas pela patente. Na segunda, somente o licenciamento voluntário ou compulsório da patente possibilita a produção local. Neste caso, as regras são as mesmas mencionadas acima para o fármaco patenteado.

O TRIPS obrigou a concessão de patente independente da área tecnológica a que pertença a invenção (Art. 27). No entanto, algumas poucas e importantes exceções são permitidas. Faz-se menção, a seguir, somente àquelas relacionadas com a área de medicamentos.

No artigo 27 (item 3, (b)) do TRIPS, plantas e animais podem ser excluídos de proteção. Também podem ser excluídas de proteção as descobertas. Essas possibilidades servem de base para o estabelecimento de importantes exclusões de patenteabilidade na Lei 9.279/96. São elas:

  1. “o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais”, por não serem considerados invenção (Art. 10, alinea IX) e
  2.  “o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microrganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade – novidade, atividade inventiva e aplicação industrial” ((Art. 18, sendo definido no parágrafo único que “microrganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais”).

Para facilitar a compreensão de tais disposições legais, são dados, a seguir, alguns exemplos de situações a serem exploradas em termos de Desenvolvimento Tecnológico.

1. Extratos de plantas e substâncias isoladas de plantas: Como mencionado acima, nenhuma dessas matérias é patenteável. No caso do material de partida ser natural, nem os extratos nem as substâncias com atividade farmacológica, isoladas de plantas que ocorrem na natureza, são patenteáveis devido ao estabelecido no Art. 10 da Lei 9.279/96. No caso da planta ou do animal ser transgênico, extratos ou substâncias isoladas dos mesmos não são patenteáveis pela exclusão prevista no parágrafo único do Art. 18 da mesma lei.

Essa exclusão apresenta a vantagem de não ser possível o monopólio na área de fitoterápicos, criando um ambiente favorável à concorrência para o desenvolvimento tecnológico de medicamentos nessa área. Se os fitoterápicos fossem patenteáveis no Brasil, empresas japonesas e norte-americanas poderiam patentear, aqui, até mesmo produtos oriundos do território brasileiro, já que as mesmas detém uma quantidade muito maior de conhecimento e recursos materiais (equipamentos de alta tecnologia), em técnicas de screening e de purificação de substâncias, que os setores público e privado nacionais.

2. Microorganismos e materiais biológicos usados na fabricação de princípios ativos: Microrganismos, bactérias, fungos, leveduras e outros materiais biológicos, por exemplo plasmídeos e bacteriófagos, são considerados importantes produtores de fármacos, tais como antibióticos, proteínas, glicoproteínas e outros princípios ativos utilizados em medicamentos. Os processos de obtenção dessas substâncias envolvem sempre etapas fermentativas e, na biotecnologia, freqüentemente etapas de modificação de microrganismos naturais utilizando técnica de DNA recombinante.

No desenvolvimento tecnológico de processos envolvendo microrganismos, é necessário fazer uma cuidadosa análise da possibilidade do uso de tais seres na medida em que, na maioria das situações, tal material pode estar protegido por patente.

Se o microrganismo ou material biológico for natural, não há dificuldade para a sua utilização em conseqüência do Art. 10 da Lei 9.279/96.

No entanto, se o microrganismo ou material biológico foi modificado por qualquer técnica, incluindo a de DNA recombinante, eles podem estar patenteados no Brasil, sendo necessária a aplicação das estratégias mencionadas acima para o caso de fármacos patenteados.

Em suma, a atividade de desenvolvimento tecnológico, seja no campo da engenharia reversa, seja no da inovação, exige profundo conhecimento das normas que regem a Propriedade Intelectual para a escolha da estratégia mais apropriada. Não há regra geral para tal análise, sendo necessária experiência suficiente nesse campo para utilizar os escassos instrumentos que contornem as restrições impostas pelo monopólio da patente.

Importantes possibilidades são as exceções previstas na Lei 9.279/96 (Art. 43, inciso II) para o uso do produto ou processo patenteado com finalidade experimental (estudos ou pesquisas científicas ou tecnológicas), e na Lei 10.196/2001 (os direitos do titular não se estendem “atos praticados por terceiros não autorizados, relacionados à invenção protegida por patente, destinados exclusivamente à produção de informações, dados e resultados de testes, visando à obtenção do registro de comercialização, no Brasil ou em outro país, para a exploração e comercialização do produto objeto da patente”, após a expiração da sua vigência). Tais possibilidades viabilizam o desenvolvimento tecnológico dos princípios ativos e medicamentos durante a vigência da patente e, imediatamente após a extinção desta, a produção de tais mercadorias.

No entanto, é necessário ressaltar que tal estratégia depende da possibilidade de aquisição do princípio ativo no mercado internacional, já que, via de regra, o produtor-titular da patente não vende tal substância para um possível futuro concorrente. Até 2005 essa estratégia é viável pois, somente até essa data, países como a Índia e a China poderão produzir livremente fármacos ou medicamentos. Mas, após 2005, mesmo essa possibilidade será inviável uma vez que tal matéria será patenteável em todos os países.

Ref.: PINHEIRO, E.S. Proposta de Ação Governamental para Investimento nas Áreas de Saúde, Ciência e Tecnologia, Rumo ao Desenvolvimento Tecnológico de Medicamentos Fundação Oswaldo Cruz, Far-Manguinhos, Rio de Janeiro, 2002.

Foto: Fiocruz

Por: Eloan Pinheiro

Reportagem publicada, originalmente, no site OutraSaúde, em 27/11/2024

 

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