Depois de uma semana intensa de atendimentos, grupos, oficinas, trabalho no território, corre-corre do dia-a-dia, o que fazer num Caps às sextas feiras a tarde?
Inicialmente a proposta para essa oficina era de ofertar um espaço de lazer, com jogos, cinema, leitura de poesias, contos e, também música. Já vinha atenta e reconhecendo alguns pacientes que se interessavam por manifestações artísticas que envolviam música e poesia, principalmente um que já havia trabalhado profissionalmente como músico. Até que a primeira surpresa: numa sexta feira de janeiro de 2024, final do dia ao me despedir escuto um batuque vindo da mesa da varanda: era nosso vigia Alan e dois pacientes cantarolando um sambinha. Digo: “isso daí dava um bloco de carnaval hein… sabia que existe Caps que tem bloco? Umas duas horas depois recebo um áudio com um samba e a proposta : “vamos fazer um bloco?”. Um mês depois estávamos curtindo o primeiro carnaval do nosso bloco, cantando alto o refrão:
“Alô, alô meu povão
Alô, alô meu povão
O Caps III não é só medicação”
Aproveitei o embalo e a partir da semana seguinte foram se juntando mais pacientes, alguns instrumentos sendo doados e uma avidez por cantar, dançar e se divertir. Com o entusiasmo e adesão dos pacientes, nem tive espaço para propor qualquer outra coisa que não fosse música, parodiando Mc Leozinho:
“Sextou só pensa em cantar
Cantar, cantar, cantar
E vem pro Caps dançar
Dançar, dançar, dançar”
Daí em diante seguimos nos encontrando toda sexta para cantar e dançar livremente, inventar novos ritmos e letras para músicas conhecidas, festejar e celebrar datas comemorativas, fazer apresentações em eventos – como no mês da Luta Antimanicomial, passeios à cachoeira e atração turística da região ao som de muita música e boas risadas e, o que mais o entusiasmo e animação dos participantes inventarem.
Hoje o Sextou ocupa toda sexta-feira do Caps. Começa com um ESQUENTA, com eles preparando logo cedo toda a aparelhagem que foi aos poucos chegando e quando me dei conta, já tinha teclado, caixas de som e microfone. A música já começa a ecoar pelo serviço logo de manhã. Na OFICINA procuro situar um fio condutor para a participação de cada um, no que lhe é mais singular. Faço isso ficando atenta a como eles se colocam diante daquele espaço, como se apresentam a partir das músicas e das danças, que vão surgindo. Quando é preciso, pergunto quais músicas e estilos musicais gostam, principalmente para aqueles que chegam bem silenciosos e mais retraídos. Quando termina a oficina, alguns ainda ficam por ali, cantando um pouco mais baixo e de forma mais livre. Pensamos que é importante reconhecer e acolher esse movimento dos “inimigos do fim” e nomeamos esse momento de o AFTER do Sextou!
Até aquele momento esse Serviço tinha um funcionamento mais próximo de um Ambulatório de Saúde Mental do que propriamente um dispositivo tipo Caps. Os atendimentos eram prioritariamente individuais e a convivência como espaço produtor de laços sociais e construção de relações de afeto esvaziados. O refrão ” o caps III não é só medicação ” era um grito de alerta e uma oportunidade para o que poderia ser a construção de um funcionamento deste serviço mais vivo, interativo, dinâmico e humanizado. Movimento este já posto em andamento pelos direcionamentos da gestão atual e que encontrou nessa proposta espaço fértil para crescer.
Cabe também ressaltar, que trata-se de um Caps III de um município da baixada fluminense – Magé, território de muita vulnerabilidade e precariedade social. Apesar de ser um território com muitas atrações naturais e culturais, nossos pacientes tem muitas dificuldades de acessá-las seja pelas condições financeiras, pelo tamanho do território ou ainda pela fragilidade do suporte familiar e social.
Pode-se destacar dois níveis de resultados até o momento: O primeiro numa esfera mais singular, no que esse espaço pôde promover para a melhoria na vida de seus participantes e um segundo, no impacto sobre o próprio serviço, familiares e território.
É importante reconhecer um investimento por parte dos próprios pacientes, técnicos da equipe e familiares que ao longo desse tempo foram colocando algo de si nessa parafernália musical. Nosso paciente músico profissional, com carteirinha da Ordem dos Músicos do Brasil fica horas ajustando seu teclado e amplificadores de som que traz para o Caps quando não tem nenhuma apresentação para fazer como trabalho. Outra boa surpresa foi ouvir que ele vinha recebendo convites para voltar a se apresentar profissionalmente. Pudemos ver pacientes mais introspectivos, que viviam isolados e entristecidos, mais presentes na convivência, conversando e trocando experiências. Um deles, que ouve muitas vozes e está sempre pelos cantos, ao batucar um pandeiro, têm sorrido mais alegremente.
Os instrumentos vão chegando pouco a pouco por doações, compras, empréstimos e arranjos entre eles. Um violão comprado num brechó, por um paciente que tinha uma relação muito difícil com a família e vizinhos, vivia sozinho num cotidiano muito empobrecido e que começa a se apropriar daquele espaço e se sentir pertencente à um grupo. O Tan Tan também comprado pelo que gosta desse instrumento e sentia falta dessa sonoridade nas nossas músicas. O pandeiro chega por doação de um pai que começa a trazer para o Sextou sua filha e sobrinho. No início ele ficava ali por perto esperando, até que aos poucos foi se aproximando, cantando junto, no mês das festas juninas vem com a irmã e dançam animados um forró.
Na comunidade, o impacto pode ser percebido na descoberta de uma escola do bairro que oferece aulas de música e que passam a frequentar e na vizinha que durante a roda de samba, entre sambas desafinados, ritmos descompassados e altos decibéis, se apresenta e pede para falar. Penso: Xiiii, nossa primeira reclamação de barulho dos vizinhos! Mas para surpresa de todos, ela nos diz: “Vocês estão de parabéns, moro aqui há muitos anos, vejo tudo que acontece e fico feliz por essa alegria toda”. Outro episódio marcante foi o coro das pessoas que estavam na Cachoeira no dia do passeio em comemoração ao primeiro aniversário do Sextou e que cantaram junto conosco : “Canta, canta minha gente, deixa a tristeza pra lá, vem pro Caps cantar alto que a vida vai melhorar…” Ali, naquela cachoeira, éramos todos, uma só voz. A integração se deu de uma tal forma que no final, um de nossos músicos e vocalistas foi convidado para cantar no Karaokê que estava rolando em uma das mesas de um quiosque.
Uma pergunta que não quer calar: O Sextou é um happy hour do Caps? Para responder lanço mão da minha orientação pela psicanálise e da aplicação desta, em espaços fora dos standards clássicos dos atendimentos individuais. Trata-se de ampliar o olhar a partir da presença do analista na cidade e nos espaços coletivos. Ouso dizer que o Sextou tem um semblante de happy hour, pois apesar de aparentar ser um espaço de festa, é uma oficina com orientação clínica e efeitos terapêuticos. Uma multiplicidade de músicas, ritmos e gostos, aberto ao inesperado. É importante estar atento à essa especificidade clínica desse trabalho, pois senão a incluímos estaremos fazendo “festa como entretenimento , naquele sentido do “manter dentro” que SARACENO(2001) nos alerta, ou seja, dentro da lógica manicomial que tanto lutamos para desconstruir.
Penso, a partir dessa experiência, que o “Sextou” já estava ali, como potência, como semente que se não cultivada se esvai com a água da chuva… Mas é preciso estar atento e recolher o que já existe como latência e oferecer as condições para que tome corpo e vida. Se posso dar uma dica, seria essa: fique atento aos batuques despretensiosos de uma sexta-feira! Busque parcerias e aposte no que pode vir de inesperado e inventivo!
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