Durante os anos de 2020 e 2021, o Instituto Cultural Barong, com apoio da Coordenadoria de IST/Aids da Cidade de São Paulo, desenvolveu o projeto “Do Centro à Perifa”, que propôs um curso semiprofissionalizante em Tatuagem para jovens em situação de Liberdade Assistida da Zona Sul do Município de São Paulo.
Os pilares da proposta envolveram três eixos: (I) a necessidade de promover uma atividade atrativa para adolescentes e jovens em situação de liberdade assistida, que, na maioria das vezes, são meninos na faixa etária de 12 e 20, conforme a Fundação CASA; (II) a promoção da autoestima e autocuidado como ferramenta de prevenção de saúde, incluindo infecções sexualmente transmissíveis (IST), paternidade não planejada, abuso de álcool e drogas e envolvimento em situações de violência; (III) e a promoção de ferramentas para ampliar horizontes futuros para o público participante do projeto, de forma que este vislumbrasse estratégias de
renda alternativa ao envolvimento em delitos, uma vez que sabemos que, dentre essas infrações, pelo menos 891,8% relaciona-se à envolvimento com roubo, furtos e drogas, geralmente para obtenção de recursos financeiros.
A cultura de gênero existente no Brasil impele que os padrões de masculinidade vividos sejam bastante rígidos e enfatizados principalmente entre a população adolescente e jovem, que busca comprovar tal posição para si e para as outras pessoas1. Elementos entendidos como “masculinos” se associam às noções de autonomia e independência, força, invulnerabilidade e risco expressos nos modelos projetivos de filmes de ação, heróis e esportistas. Não à toa, o Brasil é o país do futebol masculino, enquanto o feminino é totalmente descartado.
Tais padrões imperam socialmente, trazendo desigualdades de gênero e, também, desvantagens na formação e vida dos homens, mas também podem ser utilizados como chamativos para a atração deste público, visando envolvê-los em estratégias educativas, preventivas e benéficas. A partir desse pressuposto, quando foi pensada a proposta de desenvolvimento de um projeto com adolescentes e jovens em situação de liberdade assistida, ante conversas com as equipes dos Serviços de Medidas Sócioeducativas (SME) da Zona Sul do Município de São Paulo, ficou clara a preocupação com a atratividade e frequência que seriam garantidas nas atividades do projeto.
Nesse sentido, podemos apontar que, no universo masculino de periferia, profissões masculinas típicas são as de pedreiro, encanador, eletricista, mecânico, entre outras, que poderiam ser propostas como cursos de formação semiprofissionalizante para este público. Porém, como instituição promotora de projetos-piloto inovadores, o Instituto Cultural Barong se propôs a ousar: propôs-se a fazer um curso de tatuagem.
A tatuagem está presente no universo jovem atual brasileiro. Ela une não apenas a preocupação estética, mas também elementos comuns entre os adolescentes e jovens, como o interesse por ilustrações e grafismos (também presente na cultura pop jovem do grafite). Além disso, a submissão à escarificação necessária à sua realização, envolve certa dor que pode ser associada à coragem e à resistência, como um ritual de passagem de masculinidade.
Não à toa a enorme presença dessa prática entre homens adolescentes e jovens no país, que chega a alguns grupos de 19% até 48,2%, principalmente do Sudeste e Sul do Brasil, com média de 2 tatuagens por pessoas, geralmente em formatos, padrões gráficos ligados à força, como animais (tigres, leões etc.), seres mitológicos poderosos (dragões etc.) ou grandes “tribais” ou símbolos (associados a povos guerreiros antigos como vikings, maoris etc.), além de tamanhos muito mais extensos e visíveis (braços, pernas, ombros) do que realizados pelas mulheres.
Ao mesmo tempo, a tatuagem costuma ter uma importância, significado, determinado por quem a realiza, por isso está associada à personalidade e aos valores pessoais, caracterizando-se não apenas como um adereço, mas também como uma autoexpressão, onde há valorização do indivíduo e suas ideias por si mesmo, como um “convite ao sujeito”, o que favorece a autoestima.
Assim, sem dúvida, um atrativo para as atividades com o mote de tatuagem seria fácil e isso se comprovou, também pelo fato de todos os jovens meninos participantes do projeto terem tatuagens em seus corpos.
Sabe-se que grande parte dessas tatuagens, inclusive, é feita por indicação de amigos, mostrando que essa atividade é vista como uma moda compartilhada,
como uma identidade de pertencimento a um grupo, apesar de sua tipificação ser individual.
Como o financiamento do projeto era visando a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (IST), incluindo o HIV/aids e a promoção da saúde sexual e reprodutiva, partiu-se do pressuposto que também as noções de sexualidade ativa, exposição a riscos são construtoras dessa imagem de masculinidade, favorecendo não apenas a indução quantitativa às práticas sexuais, quanto à realização dessas sem prevenção, mesmo com relação à paternidade; assim como o envolvimento com a utilização de substâncias consideradas adultas, mesmo que nocivas, como o álcool e as drogas, que sabemos facilitar o sexo desprotegido.
Nesse sentido, como todos os projetos de prevenção do Barong, outro pressuposto era imperativo: de que só se previne quem se enxerga, se gosta e, por isso, se cuida. Ou seja, atuar com adolescentes e jovens se inicia com a importância de ouvi-los, enxergá-los e fazê-los se sentir agentes de uma ação; atuantes socialmente, para que cuidem de si e repassem tais cuidados e dicas para seus amigos, numa educação boca-a-boca entre pares, reconhecidamente uma estratégia de multiplicação utilizada na educação.
Sempre com o mote da tatuagem, foi definido que, em cada aula, haveria de 20 a 25 minutos de diálogo sobre os temas de Saúde, estimulados por “Cartazes-Temáticos Geradores”. Para cada tema, um cartaz seria apresentado solicitando uma interpretação dos participantes que, depois de falarem e (fundamental) serem ouvidos, receberiam informações de promoção ao respeito ao cuidado e a saúde. Os temas selecionados para cada um dos 8 encontros e as respectivas imagens geradoras de debate foram: 1º dia: identidade, diferenças, autoestima e respeito; 2º dia: autocuidado e bem-estar e prevenção em saúde; 3º dia: uso e abuso de álcool e drogas e redução de danos; 4º dia: masculinidade, estereótipos e exposição a riscos 5º dia: diversidade sexual e respeito aos LGBT; 6º dia: relacionamentos afetivos e sexuais e machismo; 7º dia: paternidade e gravidez não-planejada e contracepção; 8º dia: prevenção de HIV/aids.
Paralelamente, o projeto se propôs a desenvolver uma cartilha orientada aos meninos, contando a história da tatuagem, que resultou na “História da Tattoo”. O material foi elaborado no formato de quadrinhos, procurando atender a facilidade deste público com o formato, ao qual foi adicionado, na parte inferior, informações de saúde sexual e reprodutiva, produzindo uma cartilha de dupla função.
O curso atingiu diretamente com os cursos 41 adolescentes e jovens em situação de liberdade assistida (5 meninas e 36 meninos), além de 79 de forma indireta, que participaram de eventos, exposição ou distribuição de materiais educativos, além de 12 profissionais de SME.
De materiais, foram distribuídas mais de 500 cartilhas “História da Tattoo”, além de cartilhas de saúde sexual e reprodutiva feminina e de prevenção de IST, incluindo HIV/Aids (também levadas para amigos, namoradas(os) e parentes), 129 preservativos femininos (externos) e 988 preservativos masculinos (internos), além de 120 sachês de gel lubrificante.
Foi também selecionada uma turma para realizar agravação em vídeobde todas as aulas, de forma a possibilitar a produção de um filme curta-metragem de 8:23XII minutos sobre o projeto , apresentado nas festasbde encerramento e distribuição de diplomas feitas em todas as turmas.
Esse material foi também muito bem recebido e fortaleceu a autoestima dos participantes do projeto, alguns se viram retratados e outros associaram a produção à importância do curso que haviam realizado.
Para a confecção deste vídeo foi especialmente elaborado o rap “Tatuagem”, por um dos auxiliares participantes do projeto, retratando na forma de letra e estilo musical, muito próximo ao gosto desses jovens, todo o processo de trabalho e fortalecendo as mensagens de saúde e autocuidado passadas durante o curso.
Esse projeto pode ser multiplicado em qualquer espaço com adolescentes e jovens!
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