Implantação e evolução da Farmácia Clínica em Unidade de Terapia Intensiva de um Hospital do Interior de Minas Gerais

A experiência de implantação do serviço de Farmácia Clínica ocorreu no Hospital Municipal Eliane Martins – HMEM (Figura 1) sediado no município de Ipatinga, no Estado de Minas Gerais, à 217 Km de Belo Horizonte, em Agosto de 2020 em meio ao cenário crescente do número de casos de COVID-19.
O HMEM é um Hospital Geral de administração pública municipal com 170 leitos, sendo que 28 destes, são leitos de UTI Adulto Tipo II; e desempenha importante papel no serviço de atenção hospitalar e urgência na microrregião Leste do Estado, prestando serviços de internação referenciada de média complexidade (CNES, 2024). Embora não ofereça serviços de alta complexidade, o hospital apresenta níveis de resolutividade que o colocam em posição de destaque como prestador na atenção terciária regional por abrigar e dar destino a pacientes portadores de diversas patologias.
Figura 1. Hospital Municipal Eliane Martins – Fachada lateral, Ipatinga-MG.

A Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é o setor com maior índice de erros de medicação devido à gravidade das doenças, à polifarmácia, ao uso de medicamentos de alto risco e à frequente mudança de farmacoterapia. Cerca de 19% desses erros representam risco de vida, enquanto 42% são importantes clinicamente e requerem tratamentos para suporte de vida (SILVA et al., 2018). A integração do farmacêutico clínico à rotina de assistência do paciente na UTI ocorre por meio de participação ativa em visitas clínicas diárias, oferecendo suporte à informação, além da análise e monitoramento da eficácia da farmacoterapia (FIDELIS et al., 2015). Assim, ele reduz o risco de resultados adversos ao identificar, resolver e prevenir problemas na terapia medicamentosa, mitigando os impactos deletérios relacionados à medicação (REIS et al., 2013).
Neste contexto a Farmácia Clínica é uma atividade farmacêutica voltada para o uso racional de medicamentos, na qual os farmacêuticos prestam cuidado ao paciente, otimizando a farmacoterapia, promovendo saúde e prevenindo doenças. Nesse sentido o farmacêutico clínico intensivista é aquele que assiste o paciente crítico inserido à equipe multiprofissional (BRASIL, 2019).
O objetivo deste relato é descrever a implantação e evolução do serviço de Farmácia Clínica no Hospital Municipal Eliane Martins no período de Ago/2020 a Dez/2023, descrevendo as atribuições do farmacêutico clínico no âmbito hospitalar e sua contribuição junto à equipe multidisciplinar.

A pandemia de COVID-19 expôs as fragilidades e gargalos estruturais do SUS, como escassez e distribuição desigual de profissionais de saúde e infraestrutura, especialmente em áreas de média e alta complexidade, impactando em aumento significativo das demandas e sobrecarga dos profissionais de saúde (COSTA et al., 2022). A crise sanitária criou um cenário desafiador aos farmacêuticos hospitalares, impondo uma resposta rápida à crise global para garantir a continuidade da assistência aos pacientes, um esforço para não comprometer a assistência aos doentes “não-COVID” e evitar o desabastecimento de medicamentos e materiais médicos. Os farmacêuticos atuaram nesse período com evidências limitadas, trabalharam na elaboração de protocolos terapêuticos, reorganização de fluxos, planos de higienização, gestão de estoques buscando antecipar-se aos riscos de desabastecimento através da padronização de opções terapêuticas alternativas (FARINHA, RIJO, 2020).
Dessa maneira, a implementação do serviço de Farmácia Clínica no HMEM teve início durante a pandemia de COVID-19 em 2020, em resposta ao aumento das internações de pacientes em estado crítico, juntamente com a expansão dos leitos de UTI de 10 para 30 (10 leitos “geral” e 20 “COVID”).

A reestruturação da equipe farmacêutica tornou-se imperativa e foi respaldada por legislações como a Resolução ANVISA n° 07/10 que define os requisitos mínimos para funcionamento de UTIs, reconhecendo o farmacêutico como membro da equipe multidisciplinar e a Resolução CFF n° 675/19 que regulamenta as atribuições do farmacêutico clínico em UTIs, sendo apoiada e aprovada pela Diretoria do HMEM, dobrando a equipe de 4 para 8 farmacêuticos em junho de 2020.
A partir de agosto/2020 as visitas farmacêuticas à UTI se tornaram diárias e foram estabelecidos os indicadores de farmácia clínica, que permitiram avaliação e monitoramento mensal das atividades desenvolvidas
Para fazer o acompanhamento dos pacientes internados eram abertas fichas individuais (Figura 2) e registrados os resultados laboratoriais, medicamentos antimicrobianos utilizados, corticoides, resultados de cultura e antibiograma, profilaxias de tromboembolismo venoso (TEV) e lesão aguda de mucosa gástrica (LAMG), vazões de medicamentos administrados por bomba de infusão e demais informações relevantes.

Figura 2. Ficha de acompanhamento dos pacientes internados em UTI/HMEM, Ipatinga-MG.

Fonte: autoria própria

Com as informações coletadas na ficha de acompanhamento, foram feitas as análises das prescrições e registradas as sugestões de intervenção a serem passadas ao corpo clínico nas visitas a UTI e durante as discussões dos casos clínicos. Logo após, eram verificadas as aceitações e classificadas de acordo com o tipo de problema relacionado a medicamentos (PRM) encontrado e/ou sugestão de melhoria para a terapêutica do paciente (Figura 3).

Figura 3. Classificação das intervenções de acordo com os problemas relacionados a medicamentos (PRM) e/ou sugestão de melhoria.

Fonte: autoria própria
Foram analisados as prescrições avaliadas e intervenções farmacêuticas ocorridas no período de agosto/2020 a dezembro/2023. Na tabela 1, são apresentadas o total de prescrições analisadas por mês, as intervenções farmacêuticas realizadas e a proporção de aceitação e não aceitação pelo corpo clínico. Enquanto nos primeiros seis meses de acompanhamento dos pacientes em terapia intensiva, o percentual médio de aceitação era de apenas 50%, sendo que a maioria das não aceitações não eram justificadas o motivo, no ano de 2023 a média foi de 90%, sendo justificadas quando a sugestão de intervenção não fosse realizada.
A busca por melhoria constante fez com que as intervenções crescessem em número, qualidade e diversidade, além de uma comunicação mais horizontal junto aos profissionais prescritores e com toda a equipe multidisciplinar.

Tabela 1. Número de prescrições analisadas e intervenções realizadas de pacientes em terapia intensiva no período de 08/2020 a 12/2023, UTI/HMEM, Ipatinga-MG.
Mês Nº de prescrições Nº de intervenções Aceitas Não Aceitas
n % n %
ago-20 313 110 69 62,7 41 37,3
set-20 377 258 106 41,1 152 58,9
out-20 324 243 114 46,9 129 53,1
nov-20 421 269 159 59,1 110 40,9
dez-20 346 326 165 50,6 161 49,4
jan-21 502 453 179 39,5 274 60,5
fev-21 404 262 142 54,2 120 45,8
mar-21 479 401 241 60,1 160 39,9
abr-21 752 721 435 60,3 286 39,7
mai-21 729 690 508 73,6 182 26,4
jun-21 787 801 644 80,4 157 19,6
jul-21 742 744 628 84,4 116 15,6
ago-21 510 591 475 80,4 116 19,6
set-21 508 528 407 77,1 121 22,9
out-21 504 521 435 83,5 86 16,5
nov-21 568 517 430 83,2 87 16,8
dez-21 508 384 335 87,2 49 12,8
jan-22 734 771 646 83,8 125 16,2
fev-22 678 643 569 88,5 74 11,5
mar-22 794 720 628 87,2 92 12,8
abr-22 786 611 541 88,5 70 11,5
mai-22 605 513 428 83,4 85 16,6
jun-22 840 707 639 90,4 68 9,6
jul-22 843 746 656 87,9 90 12,1
ago-22 867 696 636 91,4 60 8,6
set-22 790 705 641 90,9 64 9,1
out-22 706 569 532 93,5 37 6,5
nov-22 689 550 508 92,4 42 7,6
dez-22 701 562 504 89,7 58 10,3
jan-23 845 759 688 90,6 71 9,4
fev-23 716 614 576 93,8 38 6,2
mar-23 906 800 711 88,9 89 11,1
abr-23 799 642 601 93,6 41 6,4
mai-23 927 784 747 95,3 37 4,7
jun-23 900 747 675 90,4 72 9,6
jul-23 1047 915 830 90,7 85 9,3
ago-23 811 670 596 89,0 74 11,0
set-23 1051 917 832 90,7 85 9,3
out-23 947 746 666 89,3 80 10,7
nov-23 791 652 567 87,0 85 13,0
dez-23 819 624 554 88,8 70 11,2
Fonte: autoria própria

O gráfico 1 apresenta a evolução das intervenções farmacêuticas no decorrer do tempo. Nota-se que as intervenções foram crescendo com o aumento da abertura de leitos e também com o tempo, em virtude do conhecimento adquirido na prática clínica. A medida que as aceitações iam crescendo, as não aceitações iam diminuindo, chegando a uma média de apenas 9,3% no ano de 2023.
Gráfico 1. Evolução das intervenções farmacêuticas e sua aceitação, realizadas no período de 08/2020 a 12/2023, UTI/HMEM, Ipatinga-MG.

Fonte: autoria própria

O gráfico 2 apresenta um comparativo do número de prescrições analisadas e intervenções realizadas no decorrer do tempo. Nota-se que o aumento foi proporcional, quanto mais prescrições foram analisadas, maior foi o número de intervenções e que estas iam aumentando com o tempo, pelos motivos já abordados. A média de intervenções no período avaliado foi de 0,9 intervenção por prescrição.

Gráfico 2. Número de intervenções x número de prescrições no decorrer do tempo. Período 08/2020 a 12/2023, UTI/HMEM, Ipatinga-MG.

Fonte: autoria própria
Todos os meses são calculados indicadores baseados nos PRMs e/ou sugestão de melhoria encontrados, para avaliar a evolução do trabalho da Farmácia Clínica e os resultados apresentados em reuniões de gestão, como pode ser exemplificado no Gráfico 3, referente a dezembro de 2023. Nesse mês foram realizadas 624 intervenções farmacêuticas, uma média de 0,8 intervenção por prescrição. Destas, 554 foram aceitas (88,8%) e adequadas pelo médico no momento da abordagem. Das 70 intervenções não aceitas (11,2%), a maioria teve uma justificativa do prescritor para não realizá-la. As principais intervenções realizadas nas prescrições foram: reposição de íons (30%), medicamento x resultado de exame (11%), dose (10%), duração da terapia antimicrobiana (9%), ajuste de dose (8%), correção de íons (7%), medicamento desnecessário e prescrito (6%), profilaxia de TEV (4%), migração de via (3%) e profilaxia de LAMG, medicamento não padronizado e falha na terapia de protocolo (2% cada). Frequência, medicamento necessário e não prescrito, interação medicamento/alimento, duplicidade terapêutica, via incorreta, duração da terapia e falha na terapia antimicrobiana corresponderam a <1% das intervenções realizadas cada.

Gráfico 3. Frequência de PRMs e/ou sugestões de melhorias das intervenções realizadas no mês de dezembro de 2023 na UTI/HMEM, Ipatinga-MG.

Fonte: autoria própria

A Assistência Farmacêutica deve estar integrada às demais atividades assistenciais prestadas ao paciente beira leito, sendo discutidas conjuntamente pela equipe multiprofissional, de acordo com o Art. 23 da RDC ANVISA nº 07/2010. Para isso, a Farmácia Clínica necessita que o profissional farmacêutico tenha um perfil multidisciplinar com amplo conhecimento em farmacologia e farmacoterapia, além de habilidade de comunicação e capacidade de tomar decisões.

Figura 4. Equipe multidisciplinar com a presença da farmacêutica realizando discussão de casos clínicos dos pacientes internados – UTI/HMEM.

Fonte: autoria própria

As abordagens ao corpo clínico começaram em um ambiente onde o farmacêutico timidamente se insere frente a uma equipe multidisciplinar já montada por médicos intensivistas, enfermeiros, fisioterapeutas e nutricionistas. Ele deve sair das paredes fechadas da farmácia hospitalar onde ele tem a segurança e experiência do processo da gestão e assistência farmacêutica e vai para um local onde até então ele não se fazia importante.
A aceitação pela equipe ocorre de maneira positiva, e aos poucos a resistência de alguns profissionais é vencida à medida que se demonstra confiança nas informações prestadas nas visitas diárias à UTI. Assim, gradativamente conseguimos conquistar espaço, demonstrando o conhecimento adquirido e aprendendo com as discussões dos casos clínicos com a equipe multidisciplinar.
As intervenções feitas pelo farmacêutico clínico podem melhorar os resultados terapêuticos, garantindo o uso racional de medicamentos, maior segurança, eficácia e custo efetividade da farmacoterapia.

Principal

Paula Vieira Coelho

paulavcoelho@yahoo.com.br

Coordenadora Farmácia - HMEM

Coautores

Luciana de Oliveira Souza Thaís Stefanne Diniz de Oliveira Alves Aline Mafra de Almeida Corrêa Luciana Flávia Teodoro

A prática foi aplicada em

Ipatinga

Minas Gerais

Sudeste

Esta prática está vinculada a

HOSPITAL MUNICIPAL DE IPATINGA ELIANE MARTINS

Hospital Municipal Eliane Martins - Avenida Felipe dos Santos - Cidade Nobre, Ipatinga - MG, Brasil

Uma organização do tipo

Instituição Pública

Foi cadastrada por

PETERSON HENRIQUE DE ARAÚJO

Conta vinculada

02 ago 2024

CADASTRO

06 ago 2024

ATUALIZAÇÃO

Condição da prática

Concluída

Situação da Prática

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