- Promoção da Saúde
Bruno Henrique da Silva Ramos
- 18 nov 2024
A experiência de implantação do serviço de Farmácia Clínica ocorreu no Hospital Municipal Eliane Martins – HMEM (Figura 1) sediado no município de Ipatinga, no Estado de Minas Gerais, à 217 Km de Belo Horizonte, em Agosto de 2020 em meio ao cenário crescente do número de casos de COVID-19.
O HMEM é um Hospital Geral de administração pública municipal com 170 leitos, sendo que 28 destes, são leitos de UTI Adulto Tipo II; e desempenha importante papel no serviço de atenção hospitalar e urgência na microrregião Leste do Estado, prestando serviços de internação referenciada de média complexidade (CNES, 2024). Embora não ofereça serviços de alta complexidade, o hospital apresenta níveis de resolutividade que o colocam em posição de destaque como prestador na atenção terciária regional por abrigar e dar destino a pacientes portadores de diversas patologias.
Figura 1. Hospital Municipal Eliane Martins – Fachada lateral, Ipatinga-MG.
A Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é o setor com maior índice de erros de medicação devido à gravidade das doenças, à polifarmácia, ao uso de medicamentos de alto risco e à frequente mudança de farmacoterapia. Cerca de 19% desses erros representam risco de vida, enquanto 42% são importantes clinicamente e requerem tratamentos para suporte de vida (SILVA et al., 2018). A integração do farmacêutico clínico à rotina de assistência do paciente na UTI ocorre por meio de participação ativa em visitas clínicas diárias, oferecendo suporte à informação, além da análise e monitoramento da eficácia da farmacoterapia (FIDELIS et al., 2015). Assim, ele reduz o risco de resultados adversos ao identificar, resolver e prevenir problemas na terapia medicamentosa, mitigando os impactos deletérios relacionados à medicação (REIS et al., 2013).
Neste contexto a Farmácia Clínica é uma atividade farmacêutica voltada para o uso racional de medicamentos, na qual os farmacêuticos prestam cuidado ao paciente, otimizando a farmacoterapia, promovendo saúde e prevenindo doenças. Nesse sentido o farmacêutico clínico intensivista é aquele que assiste o paciente crítico inserido à equipe multiprofissional (BRASIL, 2019).
O objetivo deste relato é descrever a implantação e evolução do serviço de Farmácia Clínica no Hospital Municipal Eliane Martins no período de Ago/2020 a Dez/2023, descrevendo as atribuições do farmacêutico clínico no âmbito hospitalar e sua contribuição junto à equipe multidisciplinar.
A pandemia de COVID-19 expôs as fragilidades e gargalos estruturais do SUS, como escassez e distribuição desigual de profissionais de saúde e infraestrutura, especialmente em áreas de média e alta complexidade, impactando em aumento significativo das demandas e sobrecarga dos profissionais de saúde (COSTA et al., 2022). A crise sanitária criou um cenário desafiador aos farmacêuticos hospitalares, impondo uma resposta rápida à crise global para garantir a continuidade da assistência aos pacientes, um esforço para não comprometer a assistência aos doentes “não-COVID” e evitar o desabastecimento de medicamentos e materiais médicos. Os farmacêuticos atuaram nesse período com evidências limitadas, trabalharam na elaboração de protocolos terapêuticos, reorganização de fluxos, planos de higienização, gestão de estoques buscando antecipar-se aos riscos de desabastecimento através da padronização de opções terapêuticas alternativas (FARINHA, RIJO, 2020).
Dessa maneira, a implementação do serviço de Farmácia Clínica no HMEM teve início durante a pandemia de COVID-19 em 2020, em resposta ao aumento das internações de pacientes em estado crítico, juntamente com a expansão dos leitos de UTI de 10 para 30 (10 leitos “geral” e 20 “COVID”).
A reestruturação da equipe farmacêutica tornou-se imperativa e foi respaldada por legislações como a Resolução ANVISA n° 07/10 que define os requisitos mínimos para funcionamento de UTIs, reconhecendo o farmacêutico como membro da equipe multidisciplinar e a Resolução CFF n° 675/19 que regulamenta as atribuições do farmacêutico clínico em UTIs, sendo apoiada e aprovada pela Diretoria do HMEM, dobrando a equipe de 4 para 8 farmacêuticos em junho de 2020.
A partir de agosto/2020 as visitas farmacêuticas à UTI se tornaram diárias e foram estabelecidos os indicadores de farmácia clínica, que permitiram avaliação e monitoramento mensal das atividades desenvolvidas
Para fazer o acompanhamento dos pacientes internados eram abertas fichas individuais (Figura 2) e registrados os resultados laboratoriais, medicamentos antimicrobianos utilizados, corticoides, resultados de cultura e antibiograma, profilaxias de tromboembolismo venoso (TEV) e lesão aguda de mucosa gástrica (LAMG), vazões de medicamentos administrados por bomba de infusão e demais informações relevantes.
Figura 2. Ficha de acompanhamento dos pacientes internados em UTI/HMEM, Ipatinga-MG.
Fonte: autoria própria
Com as informações coletadas na ficha de acompanhamento, foram feitas as análises das prescrições e registradas as sugestões de intervenção a serem passadas ao corpo clínico nas visitas a UTI e durante as discussões dos casos clínicos. Logo após, eram verificadas as aceitações e classificadas de acordo com o tipo de problema relacionado a medicamentos (PRM) encontrado e/ou sugestão de melhoria para a terapêutica do paciente (Figura 3).
Figura 3. Classificação das intervenções de acordo com os problemas relacionados a medicamentos (PRM) e/ou sugestão de melhoria.
Fonte: autoria própria
Foram analisados as prescrições avaliadas e intervenções farmacêuticas ocorridas no período de agosto/2020 a dezembro/2023. Na tabela 1, são apresentadas o total de prescrições analisadas por mês, as intervenções farmacêuticas realizadas e a proporção de aceitação e não aceitação pelo corpo clínico. Enquanto nos primeiros seis meses de acompanhamento dos pacientes em terapia intensiva, o percentual médio de aceitação era de apenas 50%, sendo que a maioria das não aceitações não eram justificadas o motivo, no ano de 2023 a média foi de 90%, sendo justificadas quando a sugestão de intervenção não fosse realizada.
A busca por melhoria constante fez com que as intervenções crescessem em número, qualidade e diversidade, além de uma comunicação mais horizontal junto aos profissionais prescritores e com toda a equipe multidisciplinar.
Tabela 1. Número de prescrições analisadas e intervenções realizadas de pacientes em terapia intensiva no período de 08/2020 a 12/2023, UTI/HMEM, Ipatinga-MG.
Mês Nº de prescrições Nº de intervenções Aceitas Não Aceitas
n % n %
ago-20 313 110 69 62,7 41 37,3
set-20 377 258 106 41,1 152 58,9
out-20 324 243 114 46,9 129 53,1
nov-20 421 269 159 59,1 110 40,9
dez-20 346 326 165 50,6 161 49,4
jan-21 502 453 179 39,5 274 60,5
fev-21 404 262 142 54,2 120 45,8
mar-21 479 401 241 60,1 160 39,9
abr-21 752 721 435 60,3 286 39,7
mai-21 729 690 508 73,6 182 26,4
jun-21 787 801 644 80,4 157 19,6
jul-21 742 744 628 84,4 116 15,6
ago-21 510 591 475 80,4 116 19,6
set-21 508 528 407 77,1 121 22,9
out-21 504 521 435 83,5 86 16,5
nov-21 568 517 430 83,2 87 16,8
dez-21 508 384 335 87,2 49 12,8
jan-22 734 771 646 83,8 125 16,2
fev-22 678 643 569 88,5 74 11,5
mar-22 794 720 628 87,2 92 12,8
abr-22 786 611 541 88,5 70 11,5
mai-22 605 513 428 83,4 85 16,6
jun-22 840 707 639 90,4 68 9,6
jul-22 843 746 656 87,9 90 12,1
ago-22 867 696 636 91,4 60 8,6
set-22 790 705 641 90,9 64 9,1
out-22 706 569 532 93,5 37 6,5
nov-22 689 550 508 92,4 42 7,6
dez-22 701 562 504 89,7 58 10,3
jan-23 845 759 688 90,6 71 9,4
fev-23 716 614 576 93,8 38 6,2
mar-23 906 800 711 88,9 89 11,1
abr-23 799 642 601 93,6 41 6,4
mai-23 927 784 747 95,3 37 4,7
jun-23 900 747 675 90,4 72 9,6
jul-23 1047 915 830 90,7 85 9,3
ago-23 811 670 596 89,0 74 11,0
set-23 1051 917 832 90,7 85 9,3
out-23 947 746 666 89,3 80 10,7
nov-23 791 652 567 87,0 85 13,0
dez-23 819 624 554 88,8 70 11,2
Fonte: autoria própria
O gráfico 1 apresenta a evolução das intervenções farmacêuticas no decorrer do tempo. Nota-se que as intervenções foram crescendo com o aumento da abertura de leitos e também com o tempo, em virtude do conhecimento adquirido na prática clínica. A medida que as aceitações iam crescendo, as não aceitações iam diminuindo, chegando a uma média de apenas 9,3% no ano de 2023.
Gráfico 1. Evolução das intervenções farmacêuticas e sua aceitação, realizadas no período de 08/2020 a 12/2023, UTI/HMEM, Ipatinga-MG.
Fonte: autoria própria
O gráfico 2 apresenta um comparativo do número de prescrições analisadas e intervenções realizadas no decorrer do tempo. Nota-se que o aumento foi proporcional, quanto mais prescrições foram analisadas, maior foi o número de intervenções e que estas iam aumentando com o tempo, pelos motivos já abordados. A média de intervenções no período avaliado foi de 0,9 intervenção por prescrição.
Gráfico 2. Número de intervenções x número de prescrições no decorrer do tempo. Período 08/2020 a 12/2023, UTI/HMEM, Ipatinga-MG.
Fonte: autoria própria
Todos os meses são calculados indicadores baseados nos PRMs e/ou sugestão de melhoria encontrados, para avaliar a evolução do trabalho da Farmácia Clínica e os resultados apresentados em reuniões de gestão, como pode ser exemplificado no Gráfico 3, referente a dezembro de 2023. Nesse mês foram realizadas 624 intervenções farmacêuticas, uma média de 0,8 intervenção por prescrição. Destas, 554 foram aceitas (88,8%) e adequadas pelo médico no momento da abordagem. Das 70 intervenções não aceitas (11,2%), a maioria teve uma justificativa do prescritor para não realizá-la. As principais intervenções realizadas nas prescrições foram: reposição de íons (30%), medicamento x resultado de exame (11%), dose (10%), duração da terapia antimicrobiana (9%), ajuste de dose (8%), correção de íons (7%), medicamento desnecessário e prescrito (6%), profilaxia de TEV (4%), migração de via (3%) e profilaxia de LAMG, medicamento não padronizado e falha na terapia de protocolo (2% cada). Frequência, medicamento necessário e não prescrito, interação medicamento/alimento, duplicidade terapêutica, via incorreta, duração da terapia e falha na terapia antimicrobiana corresponderam a <1% das intervenções realizadas cada.
Gráfico 3. Frequência de PRMs e/ou sugestões de melhorias das intervenções realizadas no mês de dezembro de 2023 na UTI/HMEM, Ipatinga-MG.
Fonte: autoria própria
A Assistência Farmacêutica deve estar integrada às demais atividades assistenciais prestadas ao paciente beira leito, sendo discutidas conjuntamente pela equipe multiprofissional, de acordo com o Art. 23 da RDC ANVISA nº 07/2010. Para isso, a Farmácia Clínica necessita que o profissional farmacêutico tenha um perfil multidisciplinar com amplo conhecimento em farmacologia e farmacoterapia, além de habilidade de comunicação e capacidade de tomar decisões.
Figura 4. Equipe multidisciplinar com a presença da farmacêutica realizando discussão de casos clínicos dos pacientes internados – UTI/HMEM.
Fonte: autoria própria
As abordagens ao corpo clínico começaram em um ambiente onde o farmacêutico timidamente se insere frente a uma equipe multidisciplinar já montada por médicos intensivistas, enfermeiros, fisioterapeutas e nutricionistas. Ele deve sair das paredes fechadas da farmácia hospitalar onde ele tem a segurança e experiência do processo da gestão e assistência farmacêutica e vai para um local onde até então ele não se fazia importante.
A aceitação pela equipe ocorre de maneira positiva, e aos poucos a resistência de alguns profissionais é vencida à medida que se demonstra confiança nas informações prestadas nas visitas diárias à UTI. Assim, gradativamente conseguimos conquistar espaço, demonstrando o conhecimento adquirido e aprendendo com as discussões dos casos clínicos com a equipe multidisciplinar.
As intervenções feitas pelo farmacêutico clínico podem melhorar os resultados terapêuticos, garantindo o uso racional de medicamentos, maior segurança, eficácia e custo efetividade da farmacoterapia.
Hospital Municipal Eliane Martins - Avenida Felipe dos Santos - Cidade Nobre, Ipatinga - MG, Brasil
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