RESUMO
Este relato de experiência descreve a integração das Constelações Familiares no cuidado integral em saúde, com ênfase na atuação prática junto ao Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) e à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de Santa Cruz Cabrália, Bahia. A partir da vivência como enfermeiro, terapeuta sistêmico e coordenador do NPICS Brasil, narro os desafios e aprendizados relacionados à formação dos facilitadores, à articulação com políticas públicas e aos limites clínicos da abordagem. O texto problematiza as fronteiras éticas, espirituais e clínicas da prática consteladora, sugerindo caminhos para seu fortalecimento institucional e interdisciplinar. As referências teóricas são utilizadas como pano de fundo para contextualizar a experiência concreta.
Palavras-chave: Constelação Familiar. Rede de Atenção Psicossocial. Práticas Integrativas. Saúde Mental. Direito Sistêmico. Ética em Terapia. Formação Profissional.
1. Introdução
As Constelações Familiares chegaram ao município de Santa Cruz Cabrália em um momento de reinvenção institucional, durante e após a pandemia da Covid-19. Atuando como enfermeiro e terapeuta vinculado ao CEJUSC e à Secretaria de Saúde, fui chamado a integrar práticas integrativas ao campo jurídico, educacional e psicossocial. A experiência local não seguiu um modelo predefinido: ela foi se construindo com base em escuta, sensibilidade institucional e diálogo com saberes científicos e comunitários.
Este relato narra, em primeira pessoa, como essa trajetória se desenvolveu, os limites éticos enfrentados, os desafios da formação dos facilitadores e os impactos observados na saúde emocional dos envolvidos.
2. O Início Sistêmico: Formação e Chamado ao Serviço Público
Minha formação como constelador se deu em um período em que pouco se discutia sobre parâmetros éticos ou currículos mínimos. A prática foi sendo lapidada por meio de cursos, supervisões e, sobretudo, da escuta sensível às dores humanas em espaços coletivos. Foi no curso de Terapia Comunitária Integrativa (Barreto, 2020) que compreendi a necessidade de inserir as constelações como parte de um cuidado ampliado.
Desde 2018, com a inclusão das Constelações como PICS no SUS, a atuação junto ao CEJUSC exigiu um novo olhar: a técnica, por si só, não era suficiente. Era preciso compreender sua inserção dentro de sistemas maiores – famílias, escolas, unidades básicas, instituições jurídicas e de assistência.
3. Desafios Éticos e Formativos: o que Aprendemos na Prática
Ao receber encaminhamentos judiciais e de saúde mental para sessões de constelação, logo se tornou evidente o risco de uso indevido da técnica como panaceia. Muitos profissionais chegavam a nós com formações frágeis, sem supervisão clínica, o que colocava em risco o bem-estar dos usuários.
Casos de espiritualização excessiva também nos demandaram atenção. Em alguns momentos, o discurso religioso presente em certas escolas formadoras entrava em choque com os valores da laicidade e do acolhimento universal do SUS. Isso nos levou a construir, junto com a equipe do NPICS, diretrizes mínimas baseadas na ética do cuidado, na interdisciplinaridade e no respeito às vulnerabilidades dos pacientes.
4. Constelações e RAPS: Integração Possível, mas com Cuidado
A atuação junto à RAPS revelou o potencial das Constelações como escuta fenomenológica de vínculos, mas também seus limites. Em situações de surtos psicóticos, uso abusivo de substâncias ou violência intrafamiliar grave, optamos por usar a constelação apenas como parte de um plano terapêutico mais amplo, que envolvia acompanhamento psiquiátrico, visitas domiciliares, presenciais ou online e escuta de enfermagem.
Aprendemos, por exemplo, a distinguir quando a constelação deveria ser adiada ou mesmo contraindicada. Como reforça Ramos & Ramos (2021), a prática ganha força quando articulada a psicoterapia, psiquiatria e práticas complementares com respaldo científico. O diálogo com a equipe multidisciplinar tornou-se indispensável.
5. Direito Sistêmico e Saúde: Caminhos Convergentes
No CEJUSC de Cabrália, a constelação se revelou útil na mediação de conflitos familiares, especialmente em casos de guarda, pensão e violência doméstica. Conduzimos ciclos de atendimento em grupo, muitas vezes vinculados a oficinas de parentalidade e práticas restaurativas.
A redução de reincidência em alguns casos foi evidente, mas nunca atribuída unicamente à constelação. O êxito dependia da presença de múltiplos fatores: acompanhamento da rede, adesão voluntária das partes, escuta ativa da equipe e alinhamento com os princípios da justiça restaurativa.
6. Caminhos para o Futuro: Supervisão, Pesquisa e Parâmetros Éticos
A prática cotidiana revelou a necessidade de formalização de um currículo mínimo para formadores e facilitadores. Junto à equipe do NPICS, organizamos supervisões coletivas, estudos de caso e momentos de cuidado com os cuidadores, a fim de mitigar o desgaste emocional.
Defendemos, como Joan Garriga (2021), que o constelador deve saber a hora de não intervir, respeitando os limites do campo. Isso implica abandonar o lugar de “curador espiritual” e assumir-se como parte de uma equipe de cuidado, num campo de alta complexidade.
7. Considerações Finais
A experiência vivida em Santa Cruz Cabrália nos mostrou que as Constelações Familiares podem ser ferramenta potente de cuidado, mas exigem humildade clínica, formação ética e articulação constante com a rede de proteção. Ao narrar essa trajetória, esperamos contribuir com outros municípios que desejem integrar essa prática ao SUS e ao Sistema de Justiça de forma ética, plural e segura.
REFERÊNCIAS
Barreto, A. (2020). Terapia Comunitária Integrativa. Fortaleza: Editora Edições UFC.
Cloclet Silva, A. R., & Campos, M. L. (2024). Terapias que se convertem em religião. Revista de Ciências Sociais.
Franco de Sá, R., Ranal, A. et al. (2021). Práticas Integrativas no SUS: limites e possibilidades. Saúde em Debate.
Gonçalves, N. P. (2023). Uso das Constelações como resolução de conflito. Colloquium Socialis.
Garriga, J. (2021). O amor que nos faz bem. Planeta.
Perazzoli, S. et al. (2022). Natural Language Processing aplicado à avaliação de constelações. International Journal of Qualitative Studies.
Ramos, S., & Ramos, J. A. (2021). Process of change and effectiveness of Family Constellations. Revista de Psicoterapia e Saúde.
Rosenberg, M. (2015). Comunicação Não Violenta: Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. Ágora.
Schubert, R. (2022–2024). Constelação Familiar na Saúde Mental e Justiça Restaurativa. Relatórios Técnicos.
Storchi, S. (2023). Direito Sistêmico: práticas restaurativas no TJBA. Relatório Interno.
Turkia, M. (2023). Ameaças espirituais e constelações: estudo etnográfico. Antropologia Brasileira.
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