Reforma Psiquiátrica: um novo lugar social para a loucura

Livro do laboratório de Saúde Mental da Fiocruz apresenta quatro dimensões fundamentais que permeiam a loucura

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Foto: Loucura Suburbana, bloco carnavalesco do Instituto Municipal Nise da Silveira

Falar em Reforma Psiquiátrica no Brasil, determinar seu início, construir uma periodização é sempre uma tarefa difícil na medida em que existem relatos e indícios de práticas de transformação no campo da assistência psiquiátrica que poderiam ser consideradas reformadoras, em um sentido geral. Neste sentido, poderiam ser citadas ou consideradas reformadoras personalidades como Juliano Moreira (Portocarrero, 1980; Jacobina, 2019), Ulisses Pernambucano (Sampaio, 1988), Osório César (Lima, 1997), Nise da Silveira (Bocai, 1980), Oswaldo Santos (Melo, 2012), e tantas outras. Por este motivo, é necessário explicitar desde já os critérios e princípios adotados para a demarcação de o processo ter sido iniciado em 1976, evidentemente que de uma forma não rígida e excludente.

Com esta denominação, Reforma Psiquiátrica, com os atores sociais e a conjuntura que se inicia naquele período, tem início um processo que, de uma forma bem clara e consistente, tem manifestações e expressões até os dias atuais. E, daqui por diante, procuraremos fundamentar para justificar e esclarecer esta argumentação.

O objetivo maior do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira não é o de tratar de maneira mais humana e da melhor forma técnica as pessoas com diagnóstico de transtorno mental. A proposta é construir um novo lugar social para a loucura, transformando as práticas da psiquiatria tradicional e das demais instituições da sociedade, o que, evidentemente, implica tratar melhor e de forma mais “humana” e solidária tais pessoas (Birman, 1992). Dito de outra forma, trata-se de um processo que busca intervir no campo das relações da sociedade com a loucura, transformando tais relações, por um lado, através de práticas contra a exclusão e, por outro, de estratégias de inclusão social dos sujeitos. Trata-se de um processo que tem como princípios éticos a inclusão, a solidariedade e a cidadania.

É neste sentido que, com uma concepção e com princípios de natureza tão abrangente e que implicam estratégias tão diversas, a Reforma Psiquiátrica tem sido denominada de processo social complexo. Isto significa dizer que se trata de um processo dinâmico, plural, articulado entre si por várias dimensões que são simultâneas e que se intercomunicam, se retroalimentam e se complementam. É um processo porque tem movimento, é permanente; mudam os atores, os sujeitos, os conceitos e as práticas. Desta forma, além dos profissionais (médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e outros), devem participar os familiares e muitos outros atores. E ainda lideranças comunitárias, formadores de opinião de todas as áreas políticas, culturais e sociais que se mobilizam com esta proposta ética, social e política da Reforma Psiquiátrica como transformação de mentalidades e práticas. Mas acima de tudo, deve participar como ator, como protagonista – protagonista e não como mero objeto das ações – o próprio sujeito com diagnóstico de transtorno mental, seja o nome que se utilize para designá-lo: “usuário”, “ex-usuário”, “sobrevivente”, “psiquiatrizado” ou outro termo qualquer. Por questões desta natureza, trata-se de um processo constituído por várias dimensões, o que nos permite caracterizá-lo como processo social complexo.

A dimensão teórico-conceitual ou epistemológica

Trata-se, de maneira geral, em discutir o saber psiquiátrico desde a noção de loucura até a noção atual, que é de transtorno mental, passando pelos conceitos de alienação mental, doença mental e noções correlatas, tais como “norma/normalidade”, “cura”, “periculosidade”, dentre muitas outras. São questionadas também a função “terapêutica” do hospital psiquiátrico e as relações entre os técnicos de saúde, a sociedade e as pessoas sob tratamento.

Não é do desconhecimento de ninguém que os hospitais psiquiátricos se tornaram grandes “depósitos”, lugares de isolamento e abandono de pessoas consideradas loucas; muitas vezes lugares de morte. Assim sendo, uma questão para a Reforma Psiquiátrica é a reflexão sobre o saber e as práticas psiquiátricas em busca de novas formas de cuidado e tratamentos efetivos, e não de isolamento e exclusão.

As novas práticas surgidas ressaltam como a intervenção médica tradicional reduz o sujeito aos sintomas e ao diagnóstico, deixando de lado as outras características da pessoa. Desta forma, tanto a noção de transtorno mental quanto a de saúde mental deve ser questionadas, gerando assim transformações das relações com os sujeitos considerados “portadores” destas. Aquele que era considerado “paciente” passou a ser entendido como sujeito capaz de conquistar níveis de autonomia e emancipação para organizar a sua vida e, a partir deste ponto de vista, merecedor de cuidados e de atenção em suas necessidades e possibilidades de participação na vida social e não de ser rejeitado e silenciado, como ocorria no contexto anterior.

A noção de “cuidado psicossocial” construída no processo de Reforma Psiquiátrica objetiva tratar da pessoa em sua integralidade e em sua complexidade, considerando tanto a dimensão psíquica/mental como a dimensão social (relação com a família, com grupos sociais: na escola, no trabalho, no lazer, etc.). O fato de que uma pessoa esteja “doente” não deve significar que os demais aspectos da sua vida devam ser deixados de lado. Cada pessoa, independentemente de sua condição de estar em um processo de sofrimento mental, deve ser considerada e estimulada no seu potencial e na sua capacidade de fazer atividades e de relacionar-se, não devendo ser-lhe imposto um jeito de ser, de agir e de conduzir a vida.

Outras noções são fundamentais de serem questionadas e, na prática, tais questionamentos demonstraram o quanto essas iniciativas podem gerar novas ressignificações de vida para os sujeitos. Por exemplo, as noções de “periculosidade”, de “incapacidade” e “irresponsabilidade civil”. Noções originárias da psiquiatria tradicional que, muitas das vezes, foram produzidas por práticas institucionais violentas e excludentes.

Na dimensão teórico-conceitual se inscrevem os processos de crítica epistemológica à psiquiatria e ao modelo biomédico, com destaque para os debates em torno da patologização e medicalização da vida, sobre os critérios, limites e consequências dos instrumentos de diagnóstico e estigmatização expressos, muito especialmente, nas versões da CID e do DSM.

Leia os outros textos do dossiê Reforma e Contrarreforma Psiquiátrica no Brasil.

A dimensão técnico-assistencial

As reflexões originárias da dimensão epistemológica afetam e transformam os princípios, os objetivos e as práticas da dimensão teórico-conceitual. Alguns aspectos desta dimensão são fundamentais para o seu entendimento, relacionados tanto ao planejamento das novas estruturas de cuidado (os novos serviços e dispositivos de atenção psicossocial) quanto ao tipo de atendimento às diferentes demandas de tratamento e ao modelo de atendimento (tipos de terapia: medicamentosa, psicoterápica, integrativa, de sociabilidades).

Um dos objetivos específicos da Reforma Psiquiátrica é a substituição do modelo de atendimento centrado na hospitalização e no isolamento por um modelo de atenção integrada ao indivíduo no seu local de domicílio, em seu território; este, entendido, não apenas segundo critérios geográficos e espaciais de limite, o bairro ou a região da cidade, mas, sobretudo, segundo o lugar social onde se tecem as referências e os códigos segundo os quais se montam as redes de relações sociais.

Atuando no território, a assistência em saúde mental tende a produzir ações para o cuidado ao indivíduo em seu próprio meio social, mantendo-o integrado à comunidade e à rede social que o cerca – sua família, amigos, trabalho, escola, grupos sociais.

A Reforma Psiquiátrica, através das políticas públicas de saúde, procura consolidar a formação de uma rede territorial de atenção em saúde mental diversificada, atendendo aos diversos tipos de problemas psiquiátricos – dos mais simples aos mais graves – e às necessidades das pessoas. Essa rede oferece diversos tipos de projetos assistenciais que não se limitam ao tratamento da doença mental em si, mas tratam do sujeito em sua integralidade, evitando o afastamento do paciente da sua família e da comunidade: tratamento individual ou grupal, atividades de inserção social – trabalho, educação, vida social, etc.

Uma rede territorial de saúde mental diversificada significa desde a existência de uma rede básica de serviços de atenção primária (Equipe de Saúde da Família, Unidades Básicas de Saúde, ambulatórios) até os leitos psiquiátricos em hospital geral, serviços substitutivos de atenção psicossocial, residências assistidas, outras estratégias de moradia e acolhimento, cooperativas sociais de trabalho, projetos sociais e artístico-culturais, etc.

Os serviços ditos substitutivos são considerados estratégicos para a consolidação da transformação na assistência e na melhoria da qualidade de vida das pessoas assistidas, tanto através de tratamentos quanto por meio de projetos relacionados à questão do trabalho, da moradia, do lazer, da arte-cultura, que visam a inserção na sociedade. Por este motivo, foi adotado o princípio de incorporar profissionais de outras áreas médicas e não médicas, tais como professores de educação física, artistas de teatro, artistas plásticos, músicos, oficineiros, educadores populares, etc., além da participação dos atores sociais (associações, entidades, movimentos sociais, etc.).

Enfim, estas novas formas de atuação implicaram a redefinição do papel profissional dos técnicos de saúde mental e tiveram como resultado uma nova relação entre os profissionais em si (a noção de equipe) e as pessoas em tratamento, não mais como “pacientes” e não apenas como “usuários”, mas como sujeitos e protagonistas de suas histórias.

A organização do modelo assistencial fundado no paradigma psiquiátrico tradicional, isto é, nas bases dos princípios alienistas da loucura, como desrazão, perda da consciência, do juízo e coisas desta ordem, dava origem a um modelo assistencial centrado na ideia de reparação moral, vigilância, controle, disciplina… Tudo o que foi possível constatar nas instituições manicomiais. Por outro lado, no contexto da crítica ao referencial epistemológico da psiquiatria sobre sua concepção de doença e seu tratamento, um modelo assistencial fundado no paradigma da atenção psicossocial investe nos serviços como estratégias ou dispositivos de mediação entre os sujeitos e a sociedade, como espaços de construção de novas possibilidades de sociabilidade e de produção de novas subjetividades. Os pressupostos de tais serviços deveriam ser centrados nos princípios dos direitos humanos, da importância do acolhimento e do cuidado ampliado, da responsabilização, do acesso irrestrito simbolizado pela ideia de “porta aberta” (Barros, 1994). Enfim, locais de produção de vida e não de morte, como nos manicômios.

A dimensão jurídico-política

A psiquiatria tradicional considera que a loucura seja sinônimo de alienação, degeneração, distúrbio, erro, ausência de razão, juízo e discernimento! “Loucura, ausência de obra” nas palavras de Foucault (Foucault, 1978). A fala do louco era considerada apenas forma de ouvir sintomas; ausência de discurso. Nos manicômios, as pessoas internadas perdiam (e perdem) seus direitos à cidadania. Juridicamente, eram consideradas “inimputáveis” – não respondendo sobre seus atos –, “incapazes” e “irresponsáveis” perante a lei – despossuídas das condições de gestão sobre seus bens e sua própria vida. Este estatuto jurídico da pessoa considerada louca é um legado rígido da psiquiatria tradicional, impresso nos códigos penal e civil, com o qual se busca romper.

Um dos maiores avanços do processo brasileiro ocorreu com a aprovação da Lei 10.216 de 6 de abril de 2001, denominada de a Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Esta lei “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. A Lei nº 10.216/01 determinou que o Ministério Público estadual fosse comunicado de todas as internações involuntárias nas primeiras 72 horas do evento. Esta determinação desencadeou um processo muito importante que fez com que o MP assumisse um protagonismo singular no processo, o que viria a ocorrer também, como consequência, com as Defensorias Públicas estaduais (Ministério Público/RJ, 2010; Pinheiro, 2010).

As mudanças políticas no rumo da saúde mental ampliaram o debate sobre a situação das pessoas internadas nas instituições psiquiátricas, inclusive nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (antes denominados de manicômios judiciários).

Um dos questionamentos fundamentais existentes nesta dimensão diz respeito à ideia de periculosidade, ou seja, de que o transtorno mental leva, consequentemente, à perda da capacidade de juízo e julgamento e, portanto, à violência e ao perigo para si e para a sociedade. Em relação a esta noção, ocorre ainda que se uma pessoa com transtorno mental vier a oferecer algum risco, ela será considerada incapaz de responder pelos seus atos, ou seja, é inimputável. Sendo assim, o juiz determina uma medida de segurança, o que significa o encaminhamento da pessoa a um manicômio judiciário para tratamento específico. A justiça então interpreta a pessoa como um ser imprevisível, um perigoso em potencial, justificando, muitas vezes, internações de longa duração ou para a vida inteira. Isto ocorre porque a “Medida de Segurança” expedida pelo juiz determina um prazo mínimo de duração, mas não o prazo limite, um prazo máximo. Para receber alta, o interno precisa ter sua condição revista por um psiquiatra e depois pelo juiz, o que na maioria das vezes não acontece.

No caso da noção de que todo louco é um ser incapaz, esta interpretação médica ocasionou a criação de meios jurídicos que justificam a tutela ou a curatela do paciente; ou seja, a família assume a responsabilidade civil e material daqueles que, pressupõe-se, não têm condições de cuidar e de gerir sua própria vida. Ou seja, pelo instrumento da curatela, torna-se possível a situação de interdição civil do louco.

No processo de Reforma Psiquiátrica, os próprios usuários interferem sobre estas ideias preconcebidas, organizando-se em coletivos, denunciando e reivindicando conquistas e garantias de direitos na sociedade. Um exemplo significativo aconteceu no III Encontro de Entidades de Usuários e Familiares da Luta Antimanicomial, no ano de 1993, quando foi formulada a Carta de Direitos dos Usuários de Serviços de Saúde Mental. Uma de suas reivindicações é de que eles sejam reconhecidos como “usuários” dos ser- viços e não como “pacientes”. O argumento utilizado é o de deixarem de ser pessoas passivas diante do seu tratamento, tornando-se pessoas ativas e influentes. O conceito de “usuário”, ou “cliente”, dos serviços, implica uma relação contratual entre o indivíduo e o serviço de atenção psicossocial, pro- duzindo um novo estatuto para o indivíduo considerado louco.

Em suma, refletindo o paradigma da psiquiatria tradicional, a dimensão jurídico-política se refere a insanos e insensatos perigosos, incapazes, irresponsáveis, despossuídos de direitos. Já no paradigma da Reforma Psiquiátrica, a mesma dimensão fala em sujeitos, em direitos, em cidadania, emancipação, reconhecimento, participação social e construção coletiva… Trata-se de uma ruptura fundamental!

A dimensão sociocultural: a produção de um novo lugar social para a loucura e o sofrimento psíquico

A dimensão sociocultural é a última aqui apresentada, mas não menos importante, já que todas elas estão interligadas, são interdependentes e, rigorosamente, não poderiam ser separadas, a não ser em caráter esquemático como é o objetivo aqui.

Na medida em que a compreensão de Reforma Psiquiátrica não se reduz à ideia da construção de um novo modelo assistencial, para além do fechamento dos manicômios e da proposição de serviços e dispositivos substitutivos, trata-se de operar na produção de novos lugares sociais para as pessoas em sofrimento psíquico ou assim diagnosticadas. Trata-se de buscar romper com as representações do imaginário social compostas de “pré-conceitos” derivados dos padrões científicos e culturais aliados e com os “pré-juízos” que existem sobre a loucura e as denominações afins. Para tanto, é preciso construir outras relações sociais com as pessoas assim identificadas ou no- meadas, promovendo mudanças no âmbito social e comunitário, desconstruindo valores e crenças excludentes e estigmatizantes. Não é tarefa fácil, não é num passe de mágica que se produz uma transformação do imaginário social em torno da loucura/doença mental; imaginário este solidamente construído pelo saber psiquiátrico e pelas instituições sociais ao longo de quase três séculos.

É possível destacar, ao menos três linhas de atuação para a transformação do imaginário, as representações e as relações sociais para com a loucura e o transtorno mental (sem uma ordem hierárquica entre elas):

1. a participação social e política de todos os atores sociais envolvidos no processo;
2. as iniciativas de trabalho, geração de renda e cooperativismo social; e,
3. os projetos artístico-culturais nos quais participam os usuários e outros profissionais.

É na segunda metade dos anos 1970, no contexto dos movimentos de redemocratização no país e de luta contra a ditadura militar, que tem início a constituição de dois movimentos (ou um grande movimento que se desdobra em duas grandes vertentes), que são os de Reforma Sanitária e Psiquiátrica no Brasil.

Um marco reconhecido neste processo refere-se à criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), organizado a partir de um grupo de jovens sanitaristas de São Paulo que se estendeu rapidamente pelo país e que, ainda hoje, é uma das mais importantes organizações no setor saúde (Amarante; Rizzotto; Costa, 2016). O Cebes teve um quadro de ativistas reconhecidos no campo da saúde e fora dele, com destaque para José Ruben de Alcântara Bonfim, David Capistrano da Costa Filho, Sergio Arouca, Eleutério Rodrigues Neto, José Gomes Temporão, Paulo Amarante, Sonia Fleury, Ana Maria Costa, dentre outros. O Cebes fundou uma revista e uma coleção de livros que se tornaram fontes obrigatórias no setor, existentes até os dias atuais, e que tinham como objetivos democratizar a discussão e o entendimento sobre as políticas de saúde no Brasil, e como tal, é reconhecido como o protagonista mais significativo no campo da saúde coletiva no Brasil (Sophia, 2013), especialmente pela edição da Revista Saúde em Debate, e pela elaboração e apresentação da proposta original do Sistema Único de Saúde (SUS). Por estes e outros motivos, que serão abordados no decorrer do texto, é que o advento do Cebes é tido como uma referência fundamental, um marco histórico, político e epistemológico para as condições de possibilidades da Reforma Sanitária/Psiquiátrica. A crítica ao modelo privatizante, hospitalocêntrico e elitista do sistema de saúde foram alguns dos temas principais da revista e da coleção Saúde em Debate (Mello, 1977, 1981).

É no interior do Cebes, originalmente, que os profissionais de saúde mental – muito particularmente médicos, num primeiro momento – organizaram núcleos de saúde mental, como ocorreu no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Minas Gerais. Estes núcleos possibilitaram reflexões sistemáticas sobre as condições da assistência psiquiátrica no país, que na época era composta fundamentalmente de hospitais psiquiátricos, públicos ou privados, em geral de grande porte. Cerqueira considera que nos anos 1970 o Brasil se aproximava dos 100 mil leitos psiquiátricos. Observa ainda que 97% de todos os recursos financeiros eram destinados ao custeio de hospitais psiquiátricos e apenas 3% eram dedicados a ambulatórios e outros equipamentos assistenciais (Cerqueira, 1984).

Nesse período, no Rio de Janeiro, um pequeno grupo de cerca de dez médicos organizam o Núcleo Estadual de Saúde Mental do Cebes, e passam a se reunir regularmente na sede da entidade que, na época, situava-se em uma sala cedida pelo Sindicato dos Médicos – que recentemente havia mudado de orientação política. Após anos sob o comando de dirigentes simpatizantes do governo autoritário, ou mesmo indicados por este, a direção do sindicato foi vencida por uma corrente de médicos críticos ao sistema, em sua maioria jovens recém-formados. Tratava-se do movimento, autodenominado Renovação Médica (Reme). A aproximação do Reme com o Cebes vai propiciar o surgimento dos primeiros passos da Reforma Psiquiátrica brasileira, como será demonstrado a seguir.

No decorrer deste texto, procuraremos demonstrar como todo este processo de transformações vai acionar sujeitos, atores sociais, instituições, enfim, um conjunto de iniciativas coletivas que vai caminhar no sentido de transformar as relações sociais com a questão da loucura, do sofrimento e da diversidade. Se no paradigma psiquiátrico a ideia da loucura e suas concepções correlatas está associada a medo, perigo, risco e ameaça dirigida às pessoas que, em última instância, seriam estranhas à sociedade (e neste sentido se remete ao significado de alienado, como alienígena de outro mundo, do mundo da lua, sem noção, e coisas desta ordem), no contexto da dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica, os afetos procuram se voltar para a inclusão, o reconhecimento do outro, da singularidade e da diversidade. Esta inversão de sentido vai propiciar novas formas de relação que, como veremos, passam fundamentalmente pelas iniciativas de caráter coletivo como dispositivos de arte e cultura, trabalho e economia solidária, associativismo e participação política e social.

Texto produzido pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/Ensp/Fiocruz)* e publicado originalmente no site Outra Saúde, em 1/7/2024.

*O Laps constitui-se como um espaço de reflexão sobre os saberes e as práticas em Saúde Mental, Atenção Psicossocial e Reforma Psiquiátrica. Suas atividades são desenvolvidas com ênfase na natureza multiprofissional e na inter-relação entre os vários saberes do campo. São atividades que agregam pesquisadores, colaboradores, técnicos, estudantes e bolsistas da Ensp e de outras instituições e entidades.

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