O reducionismo genético ameaça o direito à saúde

Geneticista alerta: Bioética deve combater ideias deterministas como um risco aos direitos humanos

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Professor Víctor Penchaszadeh (Créditos: Notas – Periodismo Popular)

No passado, a medicina genética já ofereceu contribuições decisivas para a causa dos direitos humanos na América Latina. Em um exemplo mais célebre, colaborou com a identificação de milhares de ossadas de vítimas das ditaduras do continente. Na Argentina, a genética também auxiliou na reunião de familiares separados pela prática criminosa dos militares do país de sequestrar filhos de militantes presos, mortos e desaparecidos e entregá-los para outras famílias. Para a confirmação da relação biológica entre avós e netos (quando não havia a possibilidade de fazer testes genéticos com os pais das crianças, desaparecidos pelo Estado ditatorial), foi até mesmo criada uma nova técnica – o chamado “índice de abuelidad”, em espanhol.

Junto de muitos outros companheiros, o médico geneticista argentino Victor Penchaszadeh foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento desse índice. Ele também participou da criação do Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG), órgão governamental que armazena o material indispensável para os processos de identificação de filhos de desaparecidos – que ocorrem até hoje. Perseguido pela extrema-direita desde antes do golpe militar de 1976 (razão pela qual, após um sequestro pelo grupo paramilitar Triple A, se exilou nos Estados Unidos), Penchaszadeh foi e é um aliado das Mães e Avós da Praça de Maio na luta por memória, verdade e justiça.

Nesta instigante intervenção no XVII Congresso da Associação Latino-americana de Medicina Social (ALAMES), realizado de 17 a 21 de julho, em Buenos Aires, Penchaszadeh olha para o avesso da moeda: a apropriação dessa mesma medicina genética por interesses mercantis, que se valem da disseminação de um discurso reducionista e determinista sobre o papel da genética na saúde para lucrar com tratamentos e técnicas duvidosos, “de altos preços e baixos benefícios”. O médico argentino convoca a Bioética, a Medicina Social e todos os que reconhecem a primazia dos determinantes sociais da saúde a combater essa deriva reacionária.

Essa manobra do “complexo médico-industrial-financeiro” não é alheia ao Brasil. Outra Saúde traduziu a palestra de Victor Penchaszadeh para o português por entender a importância de sua reflexão para o cenário nacional, onde também se percebe um peso crescente desses mesmos interesses econômicos nos debates da saúde.

Boa leitura! (G. A.)

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Como o reducionismo genético ameaça o direito à saúde*

Título original: “Determinação social, bioética e reducionismo genético”

Por Victor Penchaszadeh** | Tradução: Guilherme Arruda

Nesta apresentação, que homenageia nosso querido e admirado Juan César García [1], trarei um panorama geral dos temas que, a meu ver, deveriam ser prioritários para a Bioética baseada nos direitos humanos e na medicina social na América Latina, para depois argumentar que o reducionismo e o determinismo genético são deformações intencionais e pseudocientíficas da genética, cujos enfoques de medicina “individualizada” ou “de precisão” deliberadamente escondem a determinação social da saúde e da doença e vulnerabilizam os direitos humanos.

Vejamos quais são, a meu ver, alguns dos temas prioritários da boa Bioética, que se concatenam com os da medicina social e da saúde coletiva.

A relação com os povos originários

Um dos principais conflitos éticos que a Bioética deve enfrentar é a magnitude dos problemas não-resolvidos da história de conquista e colonização dos povos originários, acompanhada de opressão, despojo, genocídio, neocolonialismo e destruição de sua história, suas línguas e suas cosmovisões, menosprezadas pelos poderes hegemônicos – nos quais se inclui, certamente, o modelo biomédico ocidental.

Existem muitas valiosas experiências interculturais no campo da saúde, mas estas ainda tendem a perpetuar relações assimétricas de poder e estereótipos onde os que ensinam tendem a ser os expoentes do mundo ocidental, enquanto os que aprendem tendem a ser os povos originários.

A pobreza e a saúde

A relação entre a pobreza e a saúde está absolutamente documentada no mundo. Em especial na América Latina, a região mais desigual do globo, onde a pobreza segue aumentando ao mesmo tempo em que cresce a concentração de riqueza, fazendo da desigualdade uma realidade cotidiana e vergonhosa que clama por um enfoque bioético de análise e ação em defesa da justiça social.

Os ataques aos sistemas de saúde

As políticas de degradação dos sistemas públicos de saúde, que ocorrem em quase todos os países da região, têm como consequência um crescimento progressivo da desigualdade e da injustiça social. Resultam também em uma passagem do conceito de saúde como direito humano a uma concepção de mercado em que os cidadãos estão à mercê de uma cobertura proporcional a seu bolso.

Os estados reduzem sua atuação ao gerenciamento de “pacotes” mínimos de atenção terceirizados a corporações financeiras privadas, enquanto cresce o controle do mercado da saúde pelo complexo médico-industrial-financeiro (com lucros bilionários para as indústrias farmacêutica, de tecnologias médicas e dos seguros privados de saúde) resultando em medicalização excessiva e intervenções supérfluas de altos preços e baixos benefícios. Nessa realidade, os princípios éticos da saúde não conseguem ser cumpridos, e a Bioética precisa tomar partido.

A distorção das prioridades da saúde

A submissão aos interesses do complexo médico-industrial-financeiro internacional leva a uma distorção das prioridades do gasto em saúde, pela qual a suposta “medicina individualizada” e a alta tecnologia se fazem aparecer como panaceias para a saúde, ignorando que o fator mais relevante no processo saúde-doença-atenção é sua determinação social.

Os enfoques de prevenção, tratamento e investigação enfatizam excessivamente os determinantes biológicos e genéticos da doença, em detrimento da determinação social, principal responsável das diferenças em nível de saúde na população. Assim, o estar saudável ou doente passa a ser responsabilidade de cada indivíduo, e não de seu entorno social e dos entraves de acesso ao sistema de saúde.

Privilegiar a responsabilidade dos genes na causalidade das doenças é uma proposta reducionista que leva a abordagens exclusivamente “genômicas” para a prevenção e o controle de enfermidades comuns – que não necessariamente são eficazes ou mesmo seguras para a saúde coletiva. O custo da alta tecnologia exigida para essas abordagens seguramente aumentará as iniquidades e violará ainda mais a vigência do direito à saúde, comprometendo a Bioética a entrar em ação.

Os direitos sexuais e reprodutivos

Ainda que hajam grandes avanços na descriminalização do aborto em vários países da América Latina, ainda ocorrem em nossa região mais de 6,5 milhões de abortos por ano, dos quais mais de 75% são inseguros e causam mais de 15% da mortalidade materna. A falta de políticas eficazes de educação sexual e acesso equitativo a contraceptivos, associada à falta de educação, só pioram o estado de coisas, afetando particularmente as adolescentes e as classes mais pobres.

Em vários de nossos países, poderosos setores conservadores e eclesiásticos contrários ao direitos das mulheres sobre seus corpos, sua saúde e sua vida estão sendo combatidos por mobilizações massivas de mulheres pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito, com importantes vitórias – e o apoio da Bioética.

Os abusos da indústria farmacêutica

A indústria farmacêutica transnacional, como parte do complexo médico-industrial-financeiro mundial, se caracteriza por ações contrárias à ética e à saúde da população, muitas das quais foram vergonhosamente postas em evidência com o açambarcamento de vacinas contra a covid-19 por parte de megacorporações dos países ricos, com lucros de bilhões de dólares.

Entre as ações antiéticas típicas da indústria farmacêutica estão a invenção de “doenças”; a redução dos critérios para o diagnóstico de doenças; o abuso de patentes; a promoção antiética de produtos duvidosos ou sem valor; a captura de agências estatais reguladoras e a participação em seu financiamento para reduzir os requisitos para aprovação de novas drogas; a criação de “comitês de especialistas” com conflitos de interesse; a manipulação de leis e acordos internacionais; e a pressão sobre Estados para proteger seus monopólios, promovendo legislações injustas ou ameaçando o desabastecimento de medicamentos caso eles não sejam comprados em seus preços extorsivos.

Os preços exorbitantes dos medicamentos não respondem a nenhuma racionalidade ou critério econômico senão o lucro desmedido, seguindo a máxima de que o preço de um medicamento é “o que o mercado esteja disposto a pagar”.

Como se isso fosse pouco, a indústria farmacêutica continua violando direitos humanos em pesquisas clínicas que atendem mais aos interesses econômicos das multinacionais que às necessidades de saúde dos povos. A Bioética latino-americana questiona isso!

A saúde dos imigrantes

O problema das migrações em massa como consequência da degradação do meio ambiente, pobreza, perseguições políticas e más condições de vida que afetam cada vez mais a América Latina. Por sua vez, elas geram desafios de primeira grandeza pelos desterros que causam, pela ruptura de laços familiares, pela má acolhida nos países receptores e pela estigmatização e violência contra migrantes, todas as quais geram graves problemas éticos de saúde e que obviamente competem à Bioética.

A violência e as sequelas de ditaduras e terrorismos de Estado

Em nossos países, a violência é uma praga com que as sociedades têm tido que lidar desde tempos imemoriais, com explicações que incluem causas econômicas, políticas e socioculturais, desigualdade, negação e discriminação do diferente, exclusão social, intolerância e impunidade. Mesmo assim, o poder e os meios de comunicação de massas vêm insistindo – sem fundamentos – que a violência pode ser atribuída a fatores biológicos e genéticos, o que é uma falácia cujo único objetivo é ocultar sua determinação social e gerar uma indústria de testes genéticos que só servirá a seus investidores.

Por outro lado, vários países da América Latina foram submetidos no passado recente a regimes ditatoriais a serviço das classes dominantes, que cometeram flagrantes violações aos direitos humanos – como desaparecimentos forçados, genocídios e sequestro de filho de dissidentes – com o objetivo de assegurar a implantação do neoliberalismo econômico e a destruição da economia dos países.

As sequelas dos regimes perduram no tecido social, e têm repercutido seriamente na saúde. Nesse Congresso, tivemos a honra de escutar Saúl Franco, membro fundador da ALAMES e da Comissão da Verdade da Colômbia, que mostrou com humanidade e humildade o que se pode alcançar quando a bioética e a medicina social unem forças por memória, verdade e justiça.

Os riscos do reducionismo genético para o direito à saúde

Por último, não porque faltem temas, mas porque me falta o tempo: a ênfase excessiva nos determinantes genéticos da doença não tem justificação científica nem bioética e é um entrave ao direito à saúde.

Nos últimos tempos, em grande medida pelo desenvolvimento da tecnociência e por interesses econômicos, ficamos sujeitos à noção de que as principais causas dos desvios da saúde se encontram na biologia dos indivíduos. Os genes adquiriram uma fama imerecida por sobre os processos vitais pós-genômicos fundamentais para a regulação do metabolismo sociedade-natureza e a interação do ser humano com o meio ambiente. Fenótipos diversos, incluindo transtornos mentais ou mesmo condutas normais como solidariedade, agressividade ou inventividade, são agora alvo de investigações absurdas para encontrar seus genes responsáveis, em vez de se investigar sua determinação social.

Poucas concepções já causaram tanto dano à ciência e à sociedade quanto o reducionismo e o determinismo genético, ideologias reacionárias e pseudo-científicas que sustentam que a explicação dos fenômenos humanos pode ser reduzida aos efeitos dos genes, relegando ao contexto ambiental e social um papel secundário. Ao reduzir o ser humano aos efeitos dos 25 mil genes que compõem nosso genoma, o reducionismo e o determinismo se esquecem que a essência da pessoa é a de um ser biopsicossocial, e que a principal determinação das doenças e dos comportamentos se encontra nas variações do meio, mais que nas variações genéticas. O reducionismo e o determinismo pretendem desconectar, portanto, as pessoas e as doenças do contexto social, desinteressando-se do estudo da interação genético-ambiental, fundamental para o metabolismo sociedade-natureza.

Se, por um lado, não se pode negar que o genoma influi em todas as características humanas e que as tecnologias baseadas na genética podem ser de grande ajuda no diagnóstico de transtornos genéticos e com potencial para a terapia gênica, sua validade e sua ética na saúde coletiva depende, assim como qualquer outra tecnologia, de 1) quem a desenvolve (o setor público ou o setor privado com fins lucrativos); 2) quem se apropria da tecnologia; 3) para que se usa e com qual legitimidade, risco e benefício; 4) se respeitam os direitos humanos e a natureza.

Certamente não há falácia maior que defender que os genes se sobrepõem à determinação social da saúde, o que leva à entronização da concepção falaciosa do “DNA todo-poderoso”, derivando em biologização, genetização e medicalização dos transtornos de saúde mental, assim como em discriminação, estigmatização, inequidades e distorções na prevenção e no tratamento de doenças, em benefício da indústria farmacêutica.

Entretanto, convenientemente, os apologistas do reducionismo e do determinismo não levam em conta estes fatos inquestionáveis: 1) que a expressão do genoma é influenciada pelo meio ambiente a partir de mecanismos epigenéticos, pelo qual um mesmo genoma pode se expressar como diferentes genótipos, a depender do meio em que está inserido; 2) que todas as características humanas, mesmo aquelas supostamente desejáveis como a inteligência, a resistência a infecções e até a força muscular, não apenas não garantem saúde, bem-estar e felicidade, como dependem muito mais das determinações sociais e ambientais que do genoma.

A atual fascinação pelas novas tecnologias leva à postulação acrítica dos genes como responsáveis principais das doenças e da variação das características humanas em geral. Ao fazer isso, o reducionismo e o determinismo genético transformam pessoas sãs em “futuros doentes”, enquanto os doentes passam de vítimas a culpadas por sua constituição genética, absolvendo de responsabilidade o sistema social e econômico que produz as agressões ambientais e sociais de que sofrem as pessoas.

Em conclusão, e como eu havia dito, estas posturas alimentam um imaginário social destinado a desviar a atenção sobre a determinação social do processo saúde-doença-atenção e constituem uma violação grave dos direitos humanos, particularmente dos direitos à saúde e à identidade. Estas correntes, lamentavelmente hegemônicas, são bancadas pelo complexo médico-industrial-financeiro e são elas que promovem abordagens enganosas como a “medicina individualizada” e a “medicina de precisão”, que inundam os meios de comunicação e as revistas médicas e científicas.

Concluo este panorama necessariamente incompleto com uma de minhas frases preferidas: “um gene é tão bom ou ruim quanto o meio em que está inserido”.

*Texto publicado originalmente no portal OutraSaúde, em 28/7/2023.

** Victor Penchaszadeh é médico especializado em pediatria, saúde pública e bioética. É, também, professor do Departamento de Ciências da Saúde da Universidad Nacional de La Matanza e autor do livro “Genética y derechos humanos: encuentros y desencuentros” (Buenos Aires: Paidós 2012).

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