A PEC do Plasma e seus efeitos destrutivos

Por que é preciso combater com vigor a proposta, no Senado, que libera a exploração do sangue dos brasileiros?

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Foto: Raul Santana / Acervo: Fiocruz Imagens

No dia 3/10, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou, por 15 votos a 11, a PEC 10/2022, apresentada por Nelsinho Trad (PSD-MT) quando o país ainda retomava alguma normalidade após a tragédia sanitária da pandemia. Conhecida como PEC do Plasma, a emenda permitiria a quebra do monopólio estatal no armazenamento e fracionamento do plasma humano, derivado do sangue usado na produção de alguns medicamentos de alto valor.

O projeto que agora poderá ser votado pelas casas legislativas foi o tema do PULSO, programa de entrevistas em vídeo do Outra Saúde, que conversou com Ana Paula Soter, ex-secretária executiva do ministério da Saúde no governo Dilma e médica sanitarista especializada em saúde coletiva. Na conversa, ela enumerou diversos argumentos que demonstram como o projeto atenta contra a saúde pública em seus princípios mais essenciais, além de não ser apoiado por nenhuma associação representativa do campo da saúde, dentre profissionais, pesquisadores e sociedade civil.

“Abre-se a porteira, no sentido pejorativo, mas muito trágico, de possibilitar a venda de outros órgãos. Qual o argumento que se terá para dizer que pode vender plasma, mas não um rim, um coração ou um fígado? A PEC não visa atender interesses da saúde pública, mas interesses comerciais, da indústria, do lucro. Vamos vender o nosso sangue para ser transformado em medicamentos, em hemoderivados, para abastecer o mercado internacional. Isso é muito grave”, sintetizou.

Como ressaltou ao longo da entrevista, trata-se de um debate ético da mais alta importância, pois elevaria a desigualdade social e econômica a um nível ainda mais perverso. Como já defendido por alguns ideólogos do livre mercado, seria uma suposta salvação para os mais pobres, que poderiam curar sua miserabilidade estrutural a partir da comercialização de uma parte do seu corpo – quem sabe até abrindo mão da própria vida? – a fim de propiciar algum conforto a famílias em situação econômica exasperante. No entanto, a experiência prévia de mercantilização desta substância tão essencial foi marcada por coleta irresponsável e ampliação de crises de saúde pública.

“Essa população que vai vender seu sangue é uma população mais vulnerável, é uma população já com mais problemas de saúde. Isso, inclusive, agrava a situação de saúde dessa população. Esse é um outro componente de alerta para a lógica de doação voluntária e doação remunerada de coleta do plasma. Um outro risco é o desabastecimento do sangue da doação voluntária, porque pode haver uma migração da população que doa para a coleta somente do plasma, que é mais fácil”, destaca.

O caráter dos interesses em jogo se evidenciou na semana da votação na CCJ, quando uma desconhecida Associação Brasileira dos Bancos de Sangue (ABBS) encheu veículos corporativos de anúncios em favor da PEC. A desinformação e a má fé deste lobby chamam a atenção. Os responsáveis não tiveram vergonha em fazer afirmações absurdas, como afirmar que o plasma, hoje, é desperdiçado. Além disso, Ana Soter lembra que tais armazenadores privados de sangue descumprem a lei ao não guardá-lo devidamente e repassá-lo aos bancos de sangue espalhados pelo país, a chamada hemorrede.

“Existem os hemocentros, que são os centros de hemoterapia, estatais, de grande complexidade, mas também tem bancos e hospitais e serviços apenas para coleta e armazenamento de sangue. Esses bancos de sangue se negam a doar o plasma para a Hemobras, não seguem a legislação que coloca a empresa como principal responsável pelo recolhimento. Negam-se a entregar o sangue e jogam esse plasma no lixo”, critica.

Para além de questões éticas, há ainda um evidente interesse nacional no monopólio do fracionamento de plasma e produção de insumos médicos. O governo Lula retomou a Hemobrás, estatal criada em 2004, justamente com o propósito de garantir essa produção. Ao contrário do que disse a propaganda da ABBS, a empresa, em parceria com uma estatal francesa, já está em vias de dominar a tecnologia que permite o fracionamento do plasma humano e sua posterior transformação.

“A Hemobrás está em fase final de incorporação tecnológica, mas a expectativa é que em 2025 já possa fracionar aqui mesmo no Brasil. Já armazena e faz a triagem. Além disso, até o final do ano, a Hemobras inaugura uma de suas fábricas, que será produtora do fator 8 recombinante, uma produção diferente, medicamento que não será produzido pelo plasma, e sim por engenharia genética. A outra fábrica, que é a de hemoderivados, já está em fase final de conclusão da incorporação tecnológica”, explica Soter, que também lembrou que a estatal já registra lucro de R$ 190 milhões nesta nova fase.

Por Gabriel Brito, publicado no site Outra Saúde, em 9/10/2023.

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