Restauração de vínculos na rede de atenção psicossocial: relato de experiência com um casal em Santa Cruz Cabrália – BA

Restauração de Vínculos na Rede de Atenção Psicossocial: Relato de Experiência com um Casal em Santa Cruz Cabrália – BA

Relato científico apresentado como resultado de experiência clínica-territorial vivenciada por equipe multiprofissional da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com o objetivo de sistematizar práticas restaurativas e sistêmicas em contextos de alta vulnerabilidade social, para fins de publicação e formação continuada.

Este artigo foi elaborado para fins de publicação, registro e difusão científica, integrando o acervo do NPICS Brasil e da Rede de Práticas Integrativas em Saúde e Justiça Restaurativa em Santa Cruz Cabrália, como parte das ações de Educação Permanente em Saúde e Cultura de Paz.

Resumo
Este artigo relata a experiência de um casal atendido pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de Santa Cruz Cabrália (BA), em situação de extrema vulnerabilidade social, uso de substâncias psicoativas e exposição a ameaças relacionadas ao narcotráfico. Com baixa adesão inicial ao Projeto Terapêutico Singular (PTS), o casal passou a responder positivamente às práticas restaurativas propostas no CREAS, com mediação sistêmica e apoio intersetorial. A complexidade do caso exigiu mudanças de território, acompanhamento remoto e articulação com programas de acolhimento infantil. O relato evidencia o papel das práticas restaurativas, da psicologia do medo e da atuação em rede na superação de traumas e na reconstrução de vínculos.
Palavras-chave: Justiça Restaurativa; Rede de Atenção Psicossocial; Narcotráfico; Psicologia do Medo; Família Acolhedora; Abordagem Sistêmica.

Abstract
This article reports the experience of a couple assisted by the Psychosocial Care Network (RAPS) of Santa Cruz Cabrália (BA), who were in a situation of extreme social vulnerability, substance use, and exposure to threats linked to drug trafficking. Initially resistant to the Singular Therapeutic Project (PTS), the couple gradually responded to restorative practices conducted at the Family Education Reference Center (CREF), supported by a systemic approach and intersectoral coordination. Due to high risk, the family was relocated, and remote psychosocial follow-up was implemented, with children integrated into foster care programs. The case highlights the importance of restorative practices, fear-based psychological dynamics, and integrated network work in healing trauma and restoring family bonds.
Keywords: Restorative Justice; Psychosocial Care Network; Drug Trafficking; Psychology of Fear; Foster Care; Systemic Approach.

1. Introdução
A justiça restaurativa, associada às Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), constitui abordagem promissora para conflitos familiares e dependência química. Na RAPS, o Cuidado em Rede exige articulação entre dispositivos territoriais, como Centros de Referência em Assistência Social (CREAS), CAPS e programas de acolhimento (BRASIL, 2021). Este estudo objetiva relatar a experiência restaurativa de um casal, destacando desafios de adesão terapêutica e estratégias sistêmicas.
2. Contexto e Cenário
Serviço: RAPS de Santa Cruz Cabrália (BA), com ênfase no CAPS, CEJUSC e CREAS.
Equipe: Enfermeiro facilitador (autor principal), psicólogo clínico (Dr. Anderson de Almeida), assistente social (Moisés de Oliveira) e equipe multiprofissional.
População atendida: Casal adulto (pseudônimos “João” e “Maria”) com histórico de uso de crack e álcool; três filhos menores.
3. Metodologia
Relato de experiência qualitativo. Foram analisadas registros do Creas e Família Acolhedora e relatos dos Conselheiros Tutelares, inclusive em acompanhamento online, via telefônica, entre agosto/2024 e março/2025.
4. Descrição do Caso
A complexidade clínica e social envolvida no caso do casal foi agravada por sua vinculação indireta a redes de narcotráfico no território. A situação chegou a um grau de vulnerabilidade e periculosidade tal que a permanência da família em Santa Cruz Cabrália tornou-se inviável. Relatos de ameaças diretas colocaram em risco a integridade física e emocional do casal, exigindo ação coordenada da Rede de Atenção Psicossocial, da equipe de saúde pública e da assistência social, com apoio técnico do CREAS. Essa intervenção permitiu a realocação segura da família para outro estado, com acompanhamento psicossocial à distância e acolhimento das crianças.
Esse caso revela o impacto das estruturas do narcotráfico sobre famílias em sofrimento e sua tentativa de reconstrução. A experiência traz à tona o tema da “psicologia do medo”, um mecanismo usado intencionalmente por organizações criminosas para controlar, silenciar e fragmentar vínculos sociais. Esse fenômeno, embora negado ou ignorado por muitos, é um desafio tanto nacional quanto internacional para os sistemas de saúde, justiça e proteção social.
4.1 Linha do Tempo
Data
Evento principal
Ago/2024
Ingresso no CAPS; avaliação inicial do PTS
Set-Out/2024
Quatro faltas consecutivas; baixa adesão
Nov/2024
Encaminhamento ao CREAS; início das práticas restaurativas
Dez/2024
Abordagem breve do pai por crise abstinencial
Jan/2025
Mudança familiar para Aracaju-SE; teleatendimento mantido
Mar/2025
Inclusão dos filhos no Programa Família Acolhedora
Abr/2025
Redução de recaídas; reaproximação do casal

4.2 Estratégias Terapêuticas
Atendimentos restaurativos (Zehr, 2001; Pranis, 2015) com mediação do psicólogo e facilitação integrativa.
Protocolos de manejo de raiva com base em Townsend (2019), combinando técnicas psicoterápicas e mindfulness.
PICS: meditação e reiki, conforme protocolo NPICS à distância.
Encaminhamento intersetorial para assistência social e Família Acolhedora (Lei nº 13.509/2017).
Telepsicologia para continuidade após mudança de município.
4.3 Acompanhamento das Crianças
As três crianças do casal foram acolhidas em duas famílias diferentes por meio do Programa Família Acolhedora, com acompanhamento coordenado por Moisés de Oliveira, desde abril de 2025. Segundo Moisés:
“As crianças hoje estão acompanhadas pelas nossas famílias que acolheram essas crianças. Essas famílias hoje recebem um subsídio do salário por cada criança. E as crianças, o menor não, o mais novo, ele não estuda ainda, mas os irmãos… No caso, são três irmãos que são acompanhados pela família acolhedora, que era do casal. E esses irmãos hoje estão dois com uma família e um com a outra família. Esse um aí não estuda ainda, mas eu tenho acompanhado, eu tenho feito visita, eu tenho sempre estado ligando para ver como é que está, como é que está o ponto de saúde. E as duas crianças hoje têm um atendimento psicológico, sendo acompanhadas por um psicólogo hoje. As duas crianças estão matriculadas, estão estudando, estão felizes, gostam de ir para a escola. E as famílias estão muito felizes com essas crianças, pelo desenvolvimento das crianças, que chegaram de uma forma e hoje estão totalmente diferentes. Está mais educada, está consciente das coisas que está fazendo. Antes era tudo bagunçado, né? Talvez possa ser que seja o ciclo de vida que ele tinha antes, né? E hoje as crianças estão transformadas. Hoje está todo mundo bem, todo mundo com saúde.”
Este relato reforça a importância do cuidado intersetorial e da escuta ativa junto às famílias acolhedoras, garantindo um ambiente seguro e afetuoso às crianças.

5. Resultados
Adesão: A participação em vários atendimentos restaurativos resultou em comprometimento gradual com o PTS.
Redução de uso: Relatos telefônicos quinzenais apontaram diminuição no consumo de álcool e ausência de tóxicos, após quatro meses.
Vínculo familiar: O casal relatou melhora na comunicação e planejamento parental; retomaram contato telefônico supervisionado com os filhos em (…)
Continuidade de cuidado: O psicólogo manteve comunicação online semanais, demonstrando viabilidade de cuidado transmunicipal.
6. Discussão
A literatura indica que intervenções restaurativas favorecem responsabilidade e reparação (ZEHR, 2001). Nesta experiência, a combinação de justiça restaurativa, abordagem integrativa e protocolos cognitivo-comportamentais para controle de agressividade (TOWNSEND, 2019) mostrou-se eficaz. O acolhimento temporário pelo Família Acolhedora mitigou riscos às crianças, alinhando-se às diretrizes de proteção integral.
Tanto Moisés de Oliveira, assistente social, quanto o psicólogo Anderson de Almeida e o enfermeiro Diego da Rosa Leal, possuem experiência prática em serviços de CAPS, o que favoreceu a leitura ampliada da complexidade do caso e a condução do cuidado interprofissional. Mesmo com a mudança do casal para outro estado (Aracaju, SE), os vínculos profissionais foram mantidos com trocas contínuas e acompanhamento remoto, assegurando apoio em saúde, bem-estar e qualidade de vida.
Segundo relato de Moisés de Oliveira:
“Esse atendimento online, esse serviço de rede que o sistema, que o programa trabalha, é muito bom, porque não perde vínculo nenhum. Hoje o contato é com os órgãos responsáveis também pela vulnerabilidade das famílias que estão vulneráveis, porque eles querem recuperação, eles querem voltar, eles querem pegar seus filhos de volta, bem de saúde, e é muito bom hoje esse serviço que faz online. Hoje por quê? Porque lá esse contato com o CREAS, com o CRAS, com o CAPS também, com todos os órgãos lá, esse não interrompe. Talvez se não fosse essa forma de online, eu acho que a gente quebrava o vínculo, quebrava o ciclo, era apenas mais um que ficava sem recuperação e era esquecido pelo sistema. Eu acho que a gente quebrava o vínculo.”
Esse testemunho reforça o valor da tecnologia como aliada na continuidade do cuidado, especialmente em contextos de mobilidade geográfica, onde a articulação intermunicipal entre os serviços é fundamental para preservar os laços terapêuticos e restaurativos estabelecidos.

7. Conclusão
O caso demonstra que práticas restaurativas integradas à RAPS podem aumentar adesão ao cuidado, reduzir uso de substâncias e restaurar vínculos familiares. Recomenda-se ampliar formações em atendimentos restaurativos e fortalecer articulação com programas de acolhimento.
8. Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Mental – 2021.
BRASIL. Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre adoção e Família Acolhedora.
HELLLINGER, B. As ordens do amor. Cultrix, 2003.
PRANIS, K. The Little Book of Circle Processes. Good Books, 2015.
TOWNSEND, M. C. Enfermagem Psiquiátrica: fundamentos e prática. 10. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2019.
ZEHR, H. Trocando as lentes: um novo enfoque contra a criminalidade e a justiça. PUCRS, 2001.

autor Principal

Diego da Rosa Leal

npicscabralia@gmail.com

Enfermeiro Terapeuta Sistêmico

Coautores

Autores Diego da Rosa Leal – Enfermeiro (COREN-BA 98607), terapeuta sistêmico, professor e coordenador do NPICS Brasil. Anderson de Almeida – Psicólogo clínico, especialista em saúde mental, com atuação no CAPS e visão restaurativa. Moisés de Oliveira – Assistente social, Responsável Técnico pelo Programa Família Acolhedora em Santa Cruz Cabrália, com experiência em acolhimento familiar e proteção social. Instituições vinculadas Rede de Atenção Psicossocial – RAPS (Santa Cruz Cabrália – BA) Núcleo de Práticas Integrativas e Comunitárias em Saúde – NPICS Brasil Centro de Referência em Assistência Social – CREAS Programa Família Acolhedora (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social)

A prática foi aplicada em

Santa Cruz Cabrália

Bahia

Nordeste

Esta prática está vinculada a

Forum Jutahy Fonseca, Santa Cruz Cabrália - BA, Brasil

Uma organização do tipo

Instituição Pública

Foi cadastrada por

Diego da Rosa Leal

Conta vinculada

24 jul 2025

CADASTRO

24 jul 2025

ATUALIZAÇÃO

Condição da prática

Concluída

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