A incidência de suicídio na adolescência e na juventude1 vem atingindo altos níveis, inclusive no Brasil. O Mapa da Violência de 2017, a partir de dados oficiais do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, revelou que entre 2002 e 2014, a taxa de suicídios de jovens (entre 15 a 29 anos) subiu de 5,1 por 100 mil habitantes para 5,6 – um aumento de quase 10% (ESCÓSSIA, F, 2017). É importante ressaltar que o fenômeno no Brasil não é recente nem isolado em relação ao que aconteceu com a população brasileira nas últimas três décadas. Em 1980, a taxa de suicídios na faixa etária de 15 a 29 anos era de 4,4 por 100 mil habitantes; chegou a 4,1 em 1990 e a 4,5 em 2000 (IDEM, 2017).
Quinze anos depois, a taxa de suicídios de jovens chega a 6,13 por 100 mil habitantes. Houve um crescimento de quase 40%, entre 1980 a 2015. A Baixada Fluminense do estado do Rio de Janeiro é historicamente conhecida pela alta incidência de criminalidade. Dados recentes do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM/DATA/SUS), apontaram um novo padrão de violência no local: o aumento de mortes por suicídio. Três municípios lideram o ranking de violências autoprovocadas entre 2000 e 2015. O primeiro é Nova Iguaçu com 64 mortes de jovens de 15 a 29 anos. Duque de Caxias ocupa a segunda posição com 55 casos e Belford Roxo ficou na terceira posição com 38 mortes. Não sabemos se essa tendência se aplica aos adolescentes (10 a 14 anos), residentes nos referidos municípios, devido à subnotificação dos casos de suicídios. Duque de Caxias foi o município que aceitou participar do projeto.
O crescimento das taxas de suicídio no Brasil nas últimas três décadas, em particular, em áreas pobres e violentas, e o agravamento do sofrimento emocional e psíquico de jovens e adolescentes, também reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), justificam a realização de um projeto que busca produzir conhecimento científico sobre o tema e promover a saúde emocional, bem como construir ferramentas de prevenção de violências autoprovocadas (suicídio consumado, tentativa de suicídio, ideação suicida e automutilação) em ambiente escolar.
É nesse intuito que o Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção (GEPeSP) , vinculado ao Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, propõe desenvolver o Projeto Escola Educação, Cidadania e Promoção da Saúde Emocional de Jovens e Adolescentes da Baixada Fluminense no ano de 2018. Trata-se de uma iniciativa que combina duas estratégias distintas, porém complementares. A primeira delas é a realização de uma pesquisa piloto de diagnóstico de saúde emocional de adolescentes da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Esse estudo tem três objetivos chave
• Investigar os fatores associados ao sofrimento psíquico e emocional do adolescente morador de áreas pobres e violentas (com as maiores taxas de homicídios).
• Fomentar políticas públicas de promoção de saúde emocional a jovens e adolescentes residentes em áreas violentas.
• Produzir subsídios para a construção de ações de prevenção de violências autoprovocadas por adolescentes moradores de áreas periféricas marcadas pelas desigualdades sociais e econômicas da Baixada Fluminense RJ.
A segunda estratégia é oferecer a comunidade escolar mais vulnerável a problemas emocionais (depressão, ansiedade, agressividade, baixa autoestima, traumas etc) a oportunidade de participar de programa de treinamento em educação emocional e formação de multiplicadores de prevenção de violências autoprovocadas dirigido a professores, funcionários (equipe de apoio das escolas) e aos alunos. A pesquisa forneceu subsídios para a construção e aplicação da metodologia do programa que denominamos por EscolaQPrevine.
Ambas as iniciativas tiveram como público alvo adolescentes com faixa etária de 9 a 15 anos, matriculados no Ensino Fundamental II, de 6 escolas públicas (1º Distrito: Olavo Bilac – EM Ricardo Augusto; 2º Distrito: Saracuruna – EM CIEP 318 (pré-teste) e EM Jayme Fichman; 3º Distrito: Imbariê EM Roberto Weguelin de Abreu e a EM CIEP 407 e 4º Distrito: Vila Canaã/ Xerem – EM Montese) do município de Duque de Caxias. A pesquisa selecionou dentro destes distritos bairros na periferia de Duque de Caxias, conhecidos pelos altos índices de homicídios registradas no ano de 2015 e baixo índice de desenvolvimento humano (IDH). Também selecionamos no quarto distrito um bairro com características rurais e menores taxas de homicídio. O estudo revelou importantes achados. São eles:
Dos 1279 adolescentes consultados por uma ficha anonimamente, 23% (288) declararam já ter vivenciado violências autoprovocadas em algum momento de sua vida. Desse total, 12% (154) informaram já ter tentado suicídio; 8% (96) confessaram condutas autolesivas sem intenção de se matar e 3% (38) tiveram a ideação suicida. Setenta e sete por cento (991) não declararam ter tido violências autoprovocadas.
As entrevistas semiestruturadas com 78 adolescentes de 4 escolas mostraram que os sintomas de depressão, ansiedade foram os problemas de saúde mental mais citados pelos adolescentes entrevistados que declararam tentativa de suicídio e pensamentos suicidas.
A violência verbal e psicológica, a violência física praticada por pares e familiares apareceram nas narrativas dos adolescentes associados ao bullying, depressão e ideação suicida.
Os adolescentes, que declararam tentativas de suicídio, também citaram histórico de tentativas anteriores, violência doméstica, abusos sexuais na família, violências físicas praticadas pelos pais, perdas de pessoas queridas, sentimento de abandono e invisibilidade e baixa confiança nos seus pares.
A pesquisa não confirmou a sua hipótese central. Os adolescentes, que residem em áreas pobres e violentas, não associaram o seu sofrimento psíquico (depressão, ansiedade e comportamentos suicidas) à vulnerabilidade situacional de seus territórios. A presença e o contato com a violência do tráfico e milicianos não são percebidos pelos entrevistados como fatores de risco de adoecimento psíquico e violências autoprovocadas.
Quanto à conduta autolesiva sem intencionalidade suicida, nossos dados confirmaram a literatura nacional e internacional: a prevalência dos casos está entre meninas de 12 e 15 anos.
Os adolescentes participantes da pesquisa, que não apresentaram sinais de adoecimento psíquico, se autodeclararam ser satisfeitos com a sua vida, embora tivessem dificuldades financeiras; disseram ter orgulho delas mesmos (forte autoestima), planos de futuro e vínculos afetivos fortes com uma pessoa chave da família – os avós, em especial, a avó. Em síntese, aprendemos que os adolescentes, que confessaram perdas de pessoas queridas em suas vidas sofrem muito, porém não elas não tiveram a oportunidade de vivem o processo de luto.
Esse diagnóstico confirmou a urgência por estratégias de promoção de saúde emocional e prevenção de violências autoprovocadas (autolesão sem intenção suicida, ideação suicida, tentativa de suicídio e suicídio) naqueles territórios. A implementação do programa piloto EscolaQPrevine foi uma tentativa de contribuir com o processo deficitário de promoção de saúde mental ainda mais evidente em territórios marginalizados socioeconomicamente como os bairros de Duque de Caxias selecionados. Esperamos fazer dos adolescentes e jovens protagonistas e multiplicadores de promoção de saúde emocional e prevenção de violências autoprovocadas de seus territórios.
O Programa EscolaQPrevine é uma iniciativa que tem como objetivo desenvolver habilidades emocionais para a vida de professores, funcionários e alunos, como também formar os agentes/multiplicadores de Prevenção de Violências Autoprovocadas em Ambiente Escolar. Esse trabalho foi primeiramente testado com adolescentes com faixa etária de 9 a 15 anos, matriculados no Ensino Fundamental II, de 6 escolas públicas localizadas na periferia do município de Duque de Caxias (bairros com as maiores e menores taxas de homicídios registradas no ano de 2015).
A segunda edição do Programa EscolaQPrevine se deu no âmbito do PROJETO ESCOLA: uma proposta de intervenção durante a pandemia de Covid 19 nas fases de retorno e adaptação ao novo normal”, aprovado pela Chamada Pública
para o Apoio a Ações Emergenciais de Enfrentamento à Covid 19 nas favelas do Rio de Janeiro, promovido pela FIOCRUZ-RJ.
O Programa EscolaQPrevine em contexto pandêmico está fundamentado nas temáticas de referência da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS)1. A PNPS revisada reforça “a necessidade de articulação com outras políticas públicas para
fortalecê-la, com o imperativo da participação social e dos movimentos populares, em virtude da impossibilidade de que o setor Sanitário responda sozinho ao enfrentamento dos determinantes e condicionantes da saúde. O Programa EscolaQPrevine, como uma possível estratégia de enfrentamento à Covid-19, em territórios periféricos de Duque de
Caxias, tomou como referência os pilares da Promoção da Saúde, Intersetorialidade, Participação Social e Protagonismo Juvenil. Daí a razão para a dimensão da Assistência Social ter sido incorporada ao programa.
Esse projeto buscou a contribuir com a produção de evidências científicas dos possíveis fatores agravantes do sofrimento psíquico da população juvenil de Duque de Caxias investigada, como também promover estratégias intervencionistas durante a pandemia de Covid-19 e na fase do retorno escolar e adaptação ao “novo normal”.
A implementação do Programa piloto da EscolaQPrenive nos ensinou que durante a formação e o estágio supervisionado é preciso oferecer apoio psicossocial. Em contexto pandêmico, acreditamos que a situação fosse ainda mais delicada. A nossa
hipótese se confirmou com a pesquisa de diagnóstico realizada na EM Jayme Fichman. Os adolescentes, que disseram ter sido contaminados pela COVID-19, foram os que mais tiveram comportamentos autolesivos com e sem intenção suicida. O projeto propôs inicialmente oferecer 2 atendimentos mensais de 50 minutos por seis meses com uma equipe multidisciplinar de 26 psicólogos, assistentes sociais e pedadogos. Contudo, devido às dificuldades de acesso à Duque de Caxias pelo valor pago por um atendimento de 50 minutos, o projeto não conseguiu profissionais desaúde com experiência profissional no manejo clínico do comportamento suicida. Por essa razão, a Coordenação adotou, como estratégia para enfrentar as dificuldades na contratação de profissionais com a expertise esperada, a proposta de trabalho baseada
na Psicologia de Grupo. O Projeto contratou 3 psicólogos e 1 assistente social para realizar os encontros do Grupo Pode Chegar e os atendimentos sociais de pais e responsáveis dos alunos inscritos. O IPPES também buscou suprir as demandas por acolhimento psicossocial, realizando uma chamada pública. O Projeto recrutou 12 psicólogos e 3 assistentes sociais voluntários, visando complementar ao serviço de acolhimento psicossocial. Esses profissionais se dispuseram fazer os atendimentos terapêuticos online. A Coordenação estava diante de um novo obstáculo: o baixo acesso ao serviço de internet. Os alunos não tinham aparelhos de celulares e computadores conectados à internet. Esse fato comprometeu os atendimentos online. Infelizmente, os psicólogos voluntários não puderam contribuir com o Projeto. Todos os atendimentos tiveram que ficar restritos aos encontros semanais com os três psicólogos contratados por 10 meses. O objetivo central dos encontros semanais do Grupo Pode Chegar foi alcançado. A cada semana, o Projeto realizou três encontros com em média 10 alunos de 11 a 17 anos cada. Os psicólogos eram sempre os mesmos, o que favoreceu a construção de um espaço seguro e confiável. O trabalho em grupo também favoreceu o alcance de um número maior de alunos. Tivemos muitos relatos de alunos que confessaram ter desenvolvido autoestima, autoconfiança e a capacidade de comunicação com seus pares dentro e fora da família após os 10 meses de participação no Grupo Pode Chegar. A realização das atividades permitiu com que o Projeto alcançasse o seu objetivo primordial: desenvolver habilidades socioemocionais para lidar com contextos de perdas, aumento das desigualdades socioeconômicas, isolamento social, retorno às aulas etc. Um segundo resultado positivo foi a inclusão do serviço social como ferramentade promoção da saúde mental no ambiente escolar. As assistentes sociais contratadas e voluntárias do Programa EscolaQPrevine desenvolveram ações com pais e responsáveis que evidenciaram o quanto o assistente social pode contribuir com a conscientização e ampliação do acesso aos serviços de saúde e assistência social dos responsáveis. As primeiras atividades desenvolvidas pelas assistentes sociais foi mapear os equipamentos, nas áreas da assistência social, saúde, educação e sociojurídicos, disponíveis no município de Duque de Caxias.
O Programa precisa avançar em dois aspectos chave. O primeiro refere-se à necessidade de estender o acompanhamento do serviço social aos alunos. A escuta qualificada com profissional do serviço social pode ampliar as formas de intervenções
assertivas, protetivas e emancipatórias. O segundo aspecto está no desenvolvimento de estratégicas de sensibilização junto às coordenações pedagógicas e à direção da Escola. O projeto encontrou inúmeras dificuldades para implementar o programa. Acreditamos que essas limitações se devem à falta de envolvimento de atores estratégicos, a saber:
no âmbito da escola: diretores e coordenadores pedagógicos; e na secretaria de educação – representantes da cúpula decisória. O impacto do programa EscolaQPrevine poderá ser eficazmente avaliado quando o Plano de Prevenção a Violências Autoprovocadas, elaborado pelos participantes da formação de multiplicadores de prevenção, for monitorado e avaliado pela comunidade escolar (pais, professores e alunos) após a conclusão do projeto. Para isso, será preciso que proposta de prevenção produzida por professores e alunos nas oficinas passe a ser objeto de discussão do planejamento estratégico anual da escola. É o que esperamos para a próxima edição do programa.
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