INTRODUÇÃO
O ponto de partida para melhor conhecermos a realidade sanitária das comunidades tradicionais afro-originárias é se dedicar ao desafio do permanente estudo referente ao processo histórico afro-diaspórico atlântico e ao genocídio secular dos povos afro-originários.
Nossa atuação vigora no universo dos quilombos, do candomblé e da umbanda, presentes no território fluminense, fontes vivas da dialética de saberes e da resiliência dos afrodescendentes e das nações pré-colombianas.
As condições objetivas das comunidades tradicionais são resultantes do processo histórico marcado pelo: genocídio dos povos originários, processo diaspórico atlântico negro, genocídio do povo afrodescendente, racismo sistêmico, ordem escravista, ordem democrática caracterizada por grandes contradições representativas, parca cidadania e exclusão social.
A resistência do povo negro, em especial, se viabilizou a partir dos valores civilizatórios africanos como espiritualidade, ancestralidade, coletividade oralidade, corporeidade, musicalidade, circularidade, conhecimento e respeito à natureza dentre outras fortalezas.
A espiritualidade, em suas diferentes formas de manifestações e de organizações como calundus, irmandades, confrarias, candomblés, umbandas, batuques, xangôs, almas d´angola, tambores de mina, encantarias e marabaixos, dentre outras, ofereceram um rico mosaico de espaços cerimoniais e de cuidado com a saúde dos seus integrantes e dos que nestes visitavam. Espaços onde a espiritualidade se transformou em proteção, cura e fortalecimento aos moradores geralmente das periferias do nosso país.
A troca de saberes, no Novo Mundo constitui ponto forte na resistência afro-originária.
Os povos africanos foram transportados para o nosso continente na época moderna, com vistas a sustentar o modo de produção escravista, a viabilização do sistema colonial, possibilitando a acumulação de capital fundante do sistema capitalista, valendo afirmar que sem a contribuição da mão de obra africana os europeus não conseguiriam a colonização das Américas e do Caribe.
Na égide escravista, civilizações africanas que no território de origem em certos momentos se enfrentavam, no nosso continente como forma de proteção, resiliência e resistência à opressão, se juntaram tecendo redes de solidariedade. No ditado preservado pela oralidade candomblecista “na senzala, uma nação trocou sua folha com outra nação”. Neste contexto muitas manifestações espirituais se preservaram, dialogaram e assimilaram diferentes ritos, processo histórico este pré-existente nos seus espaços originários.
No candomblé, as várias nações existentes nos evidenciam esta pluralidade, na égide escravista quando diferentes povos trocaram saberes e conceberam novas formas de afirmação espirituais e de preservação das suas ancestralidades, enfatizamos a necessidade de melhor conhecermos a pertença entre diferentes povos numa realidade opressora que de certa forma se prolonga até o presente momento.
A prova deste processo dialógico vivenciado em todo território brasileiro são as manifestações espirituais fundadas a partir da troca de saberes e da solidariedade entre diferentes grupos. Nos tempos mais difíceis, no período imperial e republicano que compreende o final dos oitocentos e primeira metade dos novecentos, quando além da repressão dos governos aos cultos afro-brasileiros a vida dos afrodescendentes era muito difícil. Afirmar tradições espirituais africanas consistia grande desafio, neste tempo diferentes grupos, mais conhecidos como nações, se fortaleciam mutuamente, “se sobrasse algo da função que passou era comum se doar para ajudar na viabilização da próxima que aconteceria”.
Fenômeno vivenciado nos lugares sagrados do candomblé é a adaptação do rito ao novo bioma das Américas e do Caribe. Numa tradição iniciática, praticante de atos votivos e de ritos onde elementos da natureza estão presentes, as sabedorias milenares destes povos africanos substituíram componentes inexistentes no Novo Mundo por outros que nele encontraram.
Desta forma a troca de saberes promovida entre os diversos grupos étnicos africanos transcendeu em vigoroso diálogo junto aos povos originários americanos. É certo que podemos observar nas cerimônias do candomblé a utilização de muitas espécies vegetais exógenas ao continente africano.
Os vegetais ocupam lugar de grande prestígio para as comunidades afro-originárias, seja na alimentação, seja na ritualística, incluindo as relacionadas às práticas de cura. Este protagonismo desempenhado pelas plantas consolidam as comunidades religiosas enquanto lugar de solidariedade e de cuidado, lugares sagrados como espaços de integralidade existencial que zelam pela saúde do corpo e da alma.
Muito antes da formação dos serviços de saúde os espaços afro-originários praticavam a cura e o alívio da dor.
Atravessando o período escravista, adentrando a era republicana, as comunidades tradicionais afro-originárias sofreram constantes ataques intolerantes do estado e da sociedade, e continuam padecendo da ausência da cidadania plena, incluindo a liberdade religiosa.
Os templos sagrados destes segmentos historicamente foram vítimas da violência dos aparelhos repressores do estado e atualmente sofrem os ataques de organizações criminosas fomentadas por ditas denominações religiosas, fundamentalistas e fascistas.
Majoritariamente localizados na franja da sociedade, nas periferias onde além da ausência dos serviços a serem oferecidos pelo estado, poderes paralelos se arvoram existir e oprimir as famílias que nestes lugares residem, umbandistas e candomblecistas enfrentam a sórdida realidade da intolerância religiosa.
Neste contexto historicamente determinado pela égide racista e excludente, ao pensarmos na realidade sanitária, nas condições da saúde dos integrantes das comunidades tradicionais afro-originárias, devemos considerar os determinantes sociais que implicam seus modus vivendi, a deficitária rede de serviços oferecidos pelo estado e a ordem opressora extra estatal, onde marginais impõem aos habitantes destes lugares suas insólitas e injustas normas.
As casas de candomblé e de umbanda, por exemplo, que desde sempre tiveram suas portas abertas aos que necessitavam amparo espiritual assim como cura de doenças, cada vez mais sofrem ataques de criminosos imbuídos de pretensos motivos pelo fundamentalismo religioso. No Rio de Janeiro, especialmente em lugares como Ilha do Governador, Parada de Lucas, Vigário Geral, Cordovil, Vila do João e Morro dos Macacos colocar roupas cerimoniais do candomblé e da umbanda, usar guias da umbanda assim como contas de candomblé, acender vela e tocar tambor poderá ser prenúncio da morte.
Desta forma, pensar em saúde no Rio de Janeiro é antes de tudo pensar na necessária cidadania não garantida pelos aparelhos estatais. Esta é a realidade dos lugares onde ainda persistem terreiros, abassás, tendas e casas de santo, na maioria localizadas nas periferias fluminenses.
O SUS talvez seja um dos poucos vetores da existência do poder estatal nas periferias. A Estratégia Saúde da Família assim como os equipamentos da saúde pública herculeamente existe nos subúrbios e comunidades periféricas enquanto atores resilientes da saúde pública.
É necessário salientar que não obstante todo cabedal cognitivo das comunidades tradicionais referentes à saúde, observamos a priori no universo dos pertencentes das comunidades tradicionais: hábitos alimentares pouco saudáveis, sedentarismo, dependência às drogas como álcool e tabaco dentre outros agravos.
A realidade sanitária das comunidades tradicionais afro-originárias reúne agravos profundos quanto a saúde dos seus integrantes, dentre eles a hipertensão arterial, a cardiopatia, a insuficiência renal crônica, a diabetes, o sedentarismo, a obesidade, a adstrição às drogas, incluindo o tabagismo e o alcoolismo, dentre outras patologias.
A vida insalubre nos domicílios existentes nas periferias, a precária rede de promoção e atenção à saúde, a deficitária rede de serviços públicos, a violência dos aparelhos repressores e dos poderes paralelos ao estado dentre outros fatores potencializam esta deficitária realidade sanitária.
Podemos observar entre os integrantes das comunidades tradicionais afro-brasileiras a não utilização dos serviços oferecidos pelo SUS, assim como aos serviços disponibilizados pela rede de serviços estatal. Muitos sacerdotes procuram o SUS somente em estados terminais, deixando de realizar os métodos preventivos de promoção e prevenção à saúde. Persiste a contradição da comunidade que preserva o saber que cura, através do uso das plantas medicinais, com a deficitária busca aos equipamentos de saúde.
Outro agravo que repercute negativamente nas condições de saúde dos integrantes das comunidades tradicionais é o crescente risco da perda de saberes referentes aos vegetais com o falecimento dos mais velhos, detentores do conhecimento que oralmente é passado de gerações a gerações. Quando esta prática tradicional de transmissão oral é interrompida ocorre um prejuízo sem condições de reparação. Atualmente este processo de transmissão sofreu grandes perdas no universo da umbanda e do candomblé, sendo necessária a afirmação de uma estratégia de preservação do patrimônio histórico material e imaterial voltado à utilização dos vegetais nas comunidades tradicionais.
Existem iniciativas de resgate e preservação destes saberes como o Coletivo de Erveiras e Erveiros do Salgueiro, que realizam rodas de conversa, oficinas de compartilhamento de práticas, recuperam espaços degradados que no passado eram utilizados no cultivo de plantas medicinais e alimentícias, resgatam os quintais domésticos e promovem a troca de sementes, plantas e mudas entre as famílias do Morro do Salgueiro.
O referido coletivo tijucano desenvolve um ideal de território sustentável e saudável, através do reflorestamento, da recuperação da mata ciliar e das minas d’água, da educação ambiental, da doação de alimentos plantados em suas hortas e da integração com a Estratégia de Saúde da Família do SUS. Apresenta soluções simples e viáveis de serem realizadas, mas que partem necessariamente da reflexão e organização coletiva.

OBJETIVO GERAL
Desenvolver métodos e ferramentas para promoção de atividades saudáveis em ambientes comunitários de matriz afro-originária da região metropolitana do Rio de Janeiro, dentre as quais quilombos, territórios religiosos de matriz africana e comunidades tradicionais.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
– Implantação das hortas comunitárias,
– Realização de oficinas de promoção da saúde,
– Assessoramento sociotécnico e reaplicabilidade,
– Reforçar redes de fortalecimento da Soberania e Segurança Alimentar e
– Difundir metodologias e tecnologias sociais voltadas à Segurança Alimentar e Nutricional em comunidades de matriz africana.
DESENVOLVIMENTO
A proposta foi viabilizada a partir de recursos destinados à Fiocruz por Emenda Parlamentar de autoria do Dep. Federal Lindbergh Farias (PT/RJ), se alicerçou a partir da experiência realizada pelo Coletivo EWE, pertencente à Comunidade de Práticas de Saberes Tradicionais da IdeiaSUS e é protagonizada pela Cooperação Social, vinculada à presidência da Fiocruz.
Desta forma afirmamos a promoção da saúde a partir de ações de soberania e segurança alimentar mediante o desenvolvimento de oficinas formativas e da implantação de hortas comunitárias em comunidades tradicionais do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense,
Utilizando a metodologia dialógica, respeitamos as especificidades de cada território e pactuamos coletivamente as linhas prioritárias das operações a serem promovidas.
Nossa ação parte do conceito de territórios saudáveis e sustentáveis e pretendemos multiplicar a experiência em outros territórios progressivamente e afirmar a necessária sustentabilidade dos territórios.
O Plantando Saúde atua inicialmente em oito comunidades da Cidade do Rio de Janeiro e oito na Baixada Fluminense, sendo três em Nova Iguaçu, dois em Duque de Caxias, um em Magé, um em Guapimirim e um em São João de Meriti.
Mobilizamos três quilombos: 1) Quilombo do Camorim Pequeno do Maciço da Pedra Branca – RJ,2) Instituto Sal&LAJE, Morro do Salgueiro – RJ e 3) Quilombo Aquilah, Praça Seca – RJ.
Além dos quilombos fazem parte da primeira etapa do projeto três templos de Umbanda (Centro Espírita Caridade Eterna, Quintino, RJ, Tenda Espírita São Jorge Guerreiro, São João de Meriti, RJ, ÚNICA, Gamboa, RJ), nove de Candomblé (Hunpame Mahi Kwe Naiye – Magé, Ile Ase Isegun Ode – Guapimirim, Ilê Asè Egbè Òmò Ejà Asè Boangbose – Anchieta, RJ, Ile Ògún Anaweji Igbele Ni Oman – Pantanal, Duque de Caxias, Ilé Omi Bayanni Àse Ìyá Naso – Cabuçu, N.Iguaçu, Ilé Omi Ojuaro – Miguel Couto, Nova Iguaçu, Unsaba Mulendi _ Kupaba Unsaba – Campo Grande, Rio de Janeiro, Ylé Asé Obá Ládé Inan – Barro Branco, Duque de Caxias e Yle Ashé Efon – Nova Era, Nova Iguaçu) e um de Ifá (Egbé Awo Orunmila Ati Babá Olojugbe – Cidade Nova, Rio de Janeiro).

A realidade sanitária das localidades onde estão situadas as comunidades tradicionais compreende: saneamento urbano deficitário, má qualidade do fornecimento d´água, poluição crescente, recorrência de doenças como DM, HAS e IRC, pneumonia, tuberculose, anemia falciforme dentre outras, agravos de violência e de intolerância religiosa, afetando consideravelmente a saúde mental da população das periferias, modo de viver sedentário, alimentação não saudável e uso de drogas.
Aliado à delicada realidade sanitária supra mencionada as comunidades tradicionais afro-originárias são vítimas do racismo sistêmico, do genocídio dos povos afro-originários e da histórica exclusão social que atravessa século desde os primeiros tempos da colonização portuguesa.

O projeto em andamento já apresenta produtos como: a realização de 5 oficinas de promoção da saúde no Campus Manguinhos Fiocruz ; a realização de 4 oficinas de formação das hortas de plantas alimentícias, medicinais e cerimoniais no Jardim Botânico do Rio de Janeiro e no Campus Manguinhos, Fiocruz, RJ; a implantação de 10 hortas horizontais, o desenvolvimento de plano de trabalho para realização de hortas verticais, o material bibliográfico sobre espécies vegetais utilizadas nas comunidades tradicionais, o vasto material de registro audiovisual,
e a produção de cartilha.

O Plantando Saúde é referenciado pelos princípios do Sistema Único de Saúde de universalidade, equidade e integralidade. Desta forma pretende se multiplicar em mais comunidades tradicionais. O presente projeto é aplicável aos demais municípios brasileiros.

autor Principal

EMANOEL CAMPOS FILHO

emanoel.filho@fiocruz.br

coordenador

Coautores

EMANOEL CAMPOS FILHO E JORGE LUIZ CARRERA JARDINEIRO

A prática foi aplicada em

RJ

Rio de Janeiro

Sudeste

Esta prática está vinculada a

Fiocruz - Campus Expansion - Avenida Brasil - Manguinhos, Rio de Janeiro - RJ, Brasil

Uma organização do tipo

Instituição Pública

Foi cadastrada por

Emanoel Campos Filho

Conta vinculada

04 nov 2025

CADASTRO

04 nov 2025

ATUALIZAÇÃO

07 jul 2024

inicio

Condição da prática

Andamento

Situação da Prática

Arquivos

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