A importância de se oferecer acolhimento 24 horas no caso de usuários de álcool e outras drogas se justifica por várias razões. Dentre elas, cabe mencionar a necessidade de se garantir um ambiente protegido e com possibilidades de atenção clínica aos usuários em situação de vulnerabilidade social — ligada tanto aos efeitos diretos da abstinência da droga, quanto ao risco aumentado de recaídas quando permanecem em seu ambiente de moradia no momento em que se decidem pelo tratamento. Outra razão importante é a constatação da elevada taxa de internações psiquiátricas de usuários de álcool e outras drogas. Esse índice não é embasado por motivos clínicos, ocorrendo apenas em função da carência de serviços que acolham esses usuários, que, apesar de demandarem atenção mais intensiva, não justificam internações hospitalares prolongadas. Assim, a possibilidade da permanência noturna para tais situações tende a diminuir a demanda hospitalar, reservando-a apenas para os casos de maior complexidade. Cabe pontuar que a carência de atenção adequada nesses momentos resulta em desassistência, comprometendo a já difícil adesão do usuário ao tratamento, e tendendo a gerar recaídas e maior resistência com relação ao retorno e à manutenção do cuidado. Além disso, é notável que a população vivendo em situação de rua está suscetível a diversos agravamentos em saúde, a exemplo da exposição elevada à tuberculose e da dificuldade de manejo e tratamento adequado a essas pessoas. Entendendo essa realidade, foi proposta, em 2018, a adequação de um espaço interno no CAPS AD III Vitória que pudesse oportunizar o cuidado nos primeiros dias de diagnóstico e tratamento, tanto de tuberculose, quanto do uso de substâncias psicoativas, aos usuários com sintomas respiratórios e suspeitos de infecção por tuberculose. Esse cuidado foi planejado para se dar concomitantemente ao processo de desintoxicação de substâncias psicoativas. Oportunizar um lugar de acolhimento integral de usuários acompanhados no CAPS AD III, com sintomas respiratórios e ou com sintomatologia característicos da tuberculose.
Proporcionar um lugar de acolhimento para as pessoas com transtornos mentais relacionados ao uso abusivo de substâncias psicoativas e que têm diagnóstico de tuberculose.
Os objetivos foram: oportunizar o início de tratamento para tuberculose em ambiente seguro e em tratamento das condições referentes ao uso abusivo de substâncias psicoativas.
Proporcionar cuidados gerais, no que tange a oferta e garantia de alimentações, doses medicamentosas supervisionadas e demais cuidados em saúde.
Favorecer a interrupção ou interromper a cadeia de transmissão da tuberculose na população em situação de rua, partindo do comportamento de agrupamentos e aglomerações em cenas de uso de substâncias psicoativas.
O estudo é de caráter descritivo e nele será relatada a experiência da implantação do leito de Semi Isolamento respiratório no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas III (Caps AD III) no ano de 2018.
O Caps AD III do município de Vitória, no estado do Espírito Santo, possui oito leitos para desintoxicação no que se refere ao uso de Substâncias Psicoativas (SPAs). Esses leitos estavam separados em duas enfermarias, uma para o público feminino e outra para o público masculino, pois questões de gênero sempre foram tratadas individualmente, respeitando as singularidades dos sujeitos.
Ao longo dos anos e dos atendimentos, fomos percebendo que o número de pessoas vivendo em situação de rua, com algum tipo de dependência química e diagnosticadas com tuberculose foi aumentando gradativamente. A necessidade de regularidade para esse grupo nos aspectos de alimentações, uso das medicações, necessidade de sono preservado, atitude pessoal de proteção, dentre outros, foi urgente, o que levou a enfermeira Michelly Christie G. A. Souza a pensar em alternativas de assistência que contemplem de maneira inclusiva essa população, seguindo a lógica da clínica ampliada.
Diante do desafio em se conseguir atendimento/acompanhamento clínico no município — onde o único leito disponível com essas características de isolamento respiratório, que frequentemente se encontrava ocupado, fica dentro do Pronto Atendimento Praia do Suá —, a equipe de enfermeiros do Caps AD III iniciou uma adequação dos espaços internos do centro em busca de um local que pudesse receber os usuários que necessitavam de período de isolamento respiratório, como recomendado pelo protocolo do Ministério da Saúde.
Segundo Jardim et al. (2009), todas as atividades que são realizadas dentro de um Caps acrescentam, e muito, na formação dos profissionais. São atividades que promovem encontros, diálogos, desejos, histórias e conhecimentos específicos. Essas convivências com as diferenças, experiências, capacidade de criação, ensino e multiplicação de saberes promovem aos usuários o exercício de autonomia, cidadania, expressão, novas descobertas de habilidades, desenvolvimento e fortalecimento de relações.
Desde a implantação do leito de semi-isolamento em março de 2018, conseguimos alcançar, até os dias de hoje, 27 pessoas, como consta em relatório da Rede Bem Estar. Ajustamos alguns fluxos concernentes à circulação interna, tanto da equipe quanto dos usuários que entram para a atenção diária e dos pacientes em tratamento de tuberculose.
Em todos os casos para os quais foi indicada essa modalidade de tratamento para tuberculose, obtivemos adesão por parte dos usuários. Em alguns momentos, precisamos de grande articulação com as equipes do consultório na rua, o programa de tuberculose municipal ou as Unidades Básicas de Saúde. Alguns momentos de manejo clínico foram detectados, a exemplo de uma reação alérgica inesperada, mas que foi contornada com eficiência devido à ação rápida da equipe.
Os casos de remissão da transmissibilidade que ocorreram dentro do esperado e que apresentavam em conjunto estabilização nas questões relacionadas à desintoxicação para uso de SPAs eram encaminhados para abrigos, retorno aos lares e/ou, ainda, retomada de aluguel por meios próprios. Os encaminhamentos eram realizados nas UBSs, no programa de tuberculose e ou junto às equipes de consultório na rua. Todos os pacientes receberam tratamento adequado, tanto para o uso de Substâncias Psicoativas quanto para o tratamento de tuberculose, e nenhuma transmissão interna foi detectada até o momento.
Concluímos que implementar estratégias voltadas para pessoas que buscam tratamento para dependência química, visando também tratar a comorbidade tuberculose, que acomete grande parte da população domiciliada e da que vive em situação de rua, além de oportunizar acolhimento para pessoas em vulnerabilidade social e nutricional, é cuidar de uma grande parcela da população que está nessas condições e, além do mais, proporcionar cuidados a todos em seu entorno, pois a circulação de pessoas potencialmente transmissoras aumenta significativamente a propagação da doença. Ademais, possibilitar tratamento adequado à pessoa dependente de substâncias psicoativas, com a proteção necessária, traz a possibilidade da pessoa iniciar seu processo de cuidado efetivo e das demais comorbidades de uma forma adequada.
Durante a pandemia de Covid-19, que impactou diretamente a oferta de serviços prestados neste Caps, a equipe, que já possuía experiência e manejo em isolamento respiratório, obtidas através do leito de Semi-Isolamento disponível, tornou-se um ponto estratégico de acolhimento na Rede de Atenção Psicossocial do município de Vitória. Recebemos usuários de abrigos, pronto atendimentos e casas de acolhidas para que as pessoas com suspeita ou com confirmação diagnóstica de Covid-19 fossem acompanhadas neste centro, independentemente do diagnóstico de uso nocivo de SPAs.
Além disso, pudemos aplicar de forma objetiva as constantes no eixo 5.2, pilar 1 do Plano Nacional para enfrentamento da tuberculose, no que se refere a prevenção e cuidado integrado centrados na pessoa com tuberculose, cumprindo os preceitos dos objetivos 1, 2, 3, 4, e 5, que contemplam acesso garantido, fortalecimento das políticas de saúde, acompanhamento adequado, fortalecimento da adesão ao tratamento, qualificação da assistência, diagnóstico e tratamento, dentre outras.
Também foi marcante para toda a equipe deste serviço termos recebido uma mãe e sua filha, que era menor de idade, referenciadas pelo abrigo de imigrantes, ambas com diagnóstico de Covid-19, que foram tratadas e acompanhadas pelo nosso serviço. Outro caso, não menos importante, foi o de um usuário em condição de paraplegia causada por Perfuração por Arma de Fogo (PAF), estando ele com diagnóstico de Covid-19, ocupando um leito do Pronto Atendimento da Praia do Suá (Paps). Ele foi encaminhado para nosso serviço para seguimento e acompanhamento.
Vale ressaltar que não tivemos casos de contaminação interna e/ou cruzada, o que demonstra a efetividade de nossas ações de enfrentamento à crise sanitária instalada no mundo. Não poderíamos imaginar que nossa experiência com o isolamento respiratório pudesse alcançar tal importância na maior emergência mundial de saúde do século XXI.
Para que haja maior segurança nas ações de assistência aos usuários, se fazem necessárias ações planejadas e pensadas em rede, tanto dentro dos espaços internos, quanto nos possíveis atores/profissionais envolvidos na assistência direta e indireta.
Pensar em saúde é visualizar todas as possibilidades que o ambiente permite, as necessidades dos usuários precisam estar contempladas em todas as suas características possíveis. Pessoas em vulnerabilidade social precisam de planos que contemplem suas questões amplamente, pois as propostas necessitam ser flexíveis ao ponto de serem não somente aceitas, mas sim internalizadas e que possa gerar melhorias significativas para o sujeito.
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