Resumo:
Este artigo apresenta um relato de experiência sobre a integração das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir de uma abordagem sistêmica que combina educação popular, justiça restaurativa e saberes tradicionais. A experiência foi desenvolvida na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), em municípios do extremo sul da Bahia, com destaque para a implementação de salas de espera terapêuticas, rodas comunitárias e práticas como imposição de mãos, meditação, florais e constelação familiar. Fundamentado em autores como Paulo Freire, Martha Rogers, Mary C. Townsend, Adalberto Barreto e Kay Pranis, o relato evidencia um modelo de cuidado integral, espiritualmente enraizado, culturalmente sensível e centrado nos vínculos comunitários. A proposta destaca o potencial das PICS para transformar o cuidado em saúde pública no Brasil, contribuindo para o fortalecimento da Rede PICS e da Rede Restaurativa.
Palavras-chave:
Práticas Integrativas; Educação Popular; Justiça Restaurativa; Saúde Sistêmica; SUS; Cuidado Integral.
Abstract:
This article presents an experience report on the integration of Integrative and Complementary Health Practices (PICS) into Brazil’s Unified Health System (SUS), using a systemic approach that combines popular education, restorative justice, and traditional knowledge. The experience was developed within the Psychosocial Care Network (RAPS) in municipalities of southern Bahia, focusing on the implementation of therapeutic waiting rooms, community circles, and practices such as laying on of hands, meditation, flower remedies, and family constellations. Grounded in the theoretical contributions of Paulo Freire, Martha Rogers, Mary C. Townsend, Adalberto Barreto, and Kay Pranis, this report highlights a model of integral care that is spiritually rooted, culturally sensitive, and centered on community bonds. The initiative demonstrates the transformative potential of PICS in public health care in Brazil, contributing to the strengthening of both the PICS and Restorative Justice Networks.
Keywords:
Integrative Practices; Popular Education; Restorative Justice; Systemic Health; SUS; Integral Care.
1. Introdução
A busca por abordagens integrais e humanizadas no cuidado em saúde tem ganhado força nos últimos anos, impulsionada pela compreensão de que os modelos biomédicos convencionais nem sempre são suficientes para atender à complexidade das necessidades humanas, especialmente no campo da saúde mental e das doenças crônicas. Nesse contexto, as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), institucionalizadas pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (BRASIL, 2015), emergem como possibilidades concretas de ampliação do cuidado, considerando os múltiplos níveis do ser — físico, emocional, mental, espiritual, social e energético.
Este relato descreve a experiência de integração das PICS com a educação popular e a justiça restaurativa no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), em municípios do extremo sul da Bahia. A proposta se apoia em uma abordagem sistêmica que compreende o cuidado como uma prática relacional, enraizada nos vínculos comunitários, no reconhecimento dos saberes populares e na escuta ativa das necessidades individuais e coletivas. Elementos como meditação, imposição de mãos, florais, constelação familiar, yoga, terapias comunitárias e círculos restaurativos passaram a ser incorporados em espaços como salas de espera terapêuticas e rodas de escuta, tanto na atenção básica quanto na atenção especializada.
Inspirado em autores como Paulo Freire (1987), Martha Rogers (1970), Mary C. Townsend (2013), Adalberto Barreto (2008), Kay Pranis (2005) e Clifford Geertz (2008), este relato propõe um modelo de cuidado que se expressa de forma espiritualmente enraizada, culturalmente sensível e integralmente vinculado à comunidade. A articulação entre as PICS, a educação popular e a justiça restaurativa apontam para a construção de um cuidado em saúde que não se limita à cura de sintomas, mas que acolhe a história, a subjetividade e os vínculos das pessoas envolvidas, promovendo saúde como pertencimento, significado e transformação social.
O objetivo deste trabalho é apresentar, por meio de um relato de experiência, as estratégias utilizadas, os aprendizados construídos e os impactos observados com a implementação desse modelo de cuidado, colaborando para o fortalecimento da Rede PICS Brasil e da Rede Restaurativa Brasil.
Resultados e Discussão
A integração das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) no Sistema Único de Saúde (SUS) tem demonstrado impactos relevantes na integralidade do cuidado e no bem-estar dos usuários, especialmente em contextos de sofrimento psíquico, ansiedade e doenças crônicas. Essa observação é respaldada por dados dos relatórios de gestão do NPICS entre 2021 e 2023, que evidenciam aumento na adesão às atividades de grupo, melhoria na escuta dos profissionais e redução na medicalização de casos leves da atenção básica.
A educação popular em saúde, conforme propõe Freire (1987), tem se mostrado uma abordagem potente na valorização dos saberes comunitários e na construção de vínculos que fortalecem a autonomia dos sujeitos. A integração entre as práticas de cuidado e a cultura local permite a construção de significados que favorecem a adesão, como nos ensina Geertz (2008), ao entender que a cultura não é um sistema fechado, mas um campo simbólico que dá sentido às ações humanas.
Por exemplo, em uma unidade de saúde do município de Santa Cruz Cabrália, uma paciente com histórico de depressão e isolamento social foi acolhida em uma sala de espera terapêutica com uso de aromaterapia, meditação guiada e roda de conversa com florais. Após algumas semanas, relatou melhora no sono, retomada do vínculo familiar e diminuição da necessidade de medicação contínua, segundo acompanhamento da equipe de saúde. Este caso ilustra a eficácia do modelo integrativo, que conjuga cuidado clínico e relacional.
As salas de espera transformadas em espaços terapêuticos demonstraram grande potencial de acolhimento. A disposição dos ambientes, o uso de recursos naturais e simbólicos, e a presença de facilitadores capacitados favoreceram a criação de atmosferas de escuta e pertencimento, o que ressoou positivamente no vínculo com os serviços de saúde.
As Teorias de Enfermagem de Rogers (1970) e Travelbee (1971) fundamentam essa atuação, ao reconhecerem a importância do campo energético, da empatia e do encontro humano como recursos terapêuticos. Já a perspectiva de Townsend (2013) reforça o papel do profissional de saúde como agente que favorece o equilíbrio emocional e espiritual dos indivíduos, especialmente em contextos comunitários.
No que se refere à linguagem diagnóstica da enfermagem, práticas como a imposição de mãos e o uso de florais foram fundamentadas no diagnóstico “campo de energia perturbado”, conforme a taxonomia da NANDA. Um exemplo disso foi o caso de um adolescente com insônia e histórico de violência doméstica, que, após quatro sessões de meditação e terapia floral, apresentou melhora significativa da qualidade do sono e da concentração escolar, conforme registros da equipe multidisciplinar.
Por fim, cabe destacar que a articulação com os princípios da justiça restaurativa, especialmente nos círculos de escuta com famílias e equipes profissionais, permitiu tratar situações de conflito e sofrimento psíquico de forma não punitiva, mas restaurativa. Essa abordagem, sustentada por Pranis (2005) e Zehr (2008), promoveu o reconhecimento da dor, a responsabilização e a possibilidade de reconstrução de vínculos entre os envolvidos.
A trajetória que culminou na institucionalização das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) no município de Santa Cruz Cabrália remonta ao ano de 2008, quando se iniciou um trabalho contínuo com base na educação popular em saúde. A inserção formal das PICS no SUS local ocorreu em 2017, fortalecendo as ações de cuidado humanizado. A partir de 2019, com a estruturação do SEJUSC – Serviço de Justiça e Cidadania –, foi possível articular os métodos consensuais, dialogais e autocompositivos às práticas integrativas, diferenciando e ao mesmo tempo integrando os conceitos de justiça restaurativa, práticas sistêmicas e recursos terapêuticos das PICS. Essa articulação resultou na transformação das práticas em serviços acessíveis à comunidade, consolidando-se como instrumentos de cuidado vinculados ao sistema de justiça. A partir da pandemia de Covid-19, o trabalho ganhou ainda mais força, expandindo-se por diversos equipamentos públicos e alcançando também o meio digital, por meio de atividades online, ampliando o acesso às ações de promoção da saúde integral em diferentes territórios.
Segundo o Relatório Quadrimestral do CAPS I de Santa Cruz Cabrália (2023), foram realizados 400 atendimentos apenas no mês de outubro, incluindo práticas integrativas como florais, auriculoterapia, constelação familiar e toque terapêutico. As salas de espera com PICS atenderam mais de 350 usuários ao longo do quadrimestre, evidenciando a adesão e a efetividade dessas práticas como parte do cuidado ampliado no SUS.
O reconhecimento institucional das práticas integrativas foi reforçado pela seleção de três projetos desenvolvidos na Atenção Primária de Santa Cruz Cabrália como experiências exitosas da Iniciativa APS Forte do SUS, conforme destacou a Secretária Municipal de Saúde, Renata Pinheiro, em entrevista ao jornal Cabrália Brilha: “são projetos que trabalham integralmente o indivíduo, não vendo só a doença, mas toda a parte holística, corpo e espírito […] onde fomos reconhecidos nacionalmente” (PINHEIRO, 2021).
Esses resultados apontam para a potência transformadora da combinação entre PICS, educação popular e justiça restaurativa no cuidado em saúde, tanto em sua dimensão clínica quanto comunitária.
Conclusão
Este relato apresentou a experiência de integração das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) no Sistema Único de Saúde (SUS), aliada à educação popular e à justiça restaurativa, por meio de uma abordagem sistêmica vivenciada na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do extremo sul da Bahia. Foram descritas estratégias como a implementação de salas de espera terapêuticas, rodas comunitárias e práticas como imposição de mãos, florais, meditação e constelação familiar, articuladas com saberes tradicionais e a escuta das comunidades.
As percepções aqui descritas são fruto da vivência direta do autor, das observações realizadas em campo e da construção coletiva com equipes multiprofissionais e usuários do SUS. Trata-se, portanto, de constatações empíricas que emergem do fazer cotidiano, das trocas simbólicas e da escuta sensível promovida nos espaços de cuidado.
A abordagem proposta se revelou potente ao promover um modelo de cuidado mais integral, espiritualmente enraizado, culturalmente sensível e centrado nos vínculos comunitários. Ao reconhecer a pessoa em sua totalidade e valorizar os saberes populares, o relato reafirma a importância de construir políticas públicas que respeitem a diversidade e favoreçam práticas de cuidado mais humanas e transformadoras.
A articulação entre PICS, educação popular e justiça restaurativa revelou-se não apenas possível, mas desejável, como resposta às limitações do modelo biomédico tradicional e como alternativa para a humanização do SUS. A proposta aqui apresentada contribui para o fortalecimento da Rede PICS Brasil e da Rede Restaurativa Brasil, estimulando outras experiências similares em diferentes territórios.
Por fim, reforça-se a importância da publicação de relatos como este, que documentam experiências exitosas, contribuem para a sistematização do cuidado integrativo e promovem o reconhecimento institucional das práticas que emergem dos territórios e da escuta sensível das comunidades.
Referências
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Forum Jutahy Fonseca, Santa Cruz Cabrália - BA, Brasil
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