A educação médica contemporânea permanece, em grande parte, ancorada em um paradigma biomédico, um modelo caracterizado por uma visão mecanicista, fragmentada e centrada na doença do corpo humano. A socióloga Madel Luz critica esse modelo hegemônico como uma “racionalidade médica” específica entre muitas, que historicamente ofuscou outros sistemas abrangentes de conhecimento e prática (LUZ, 2005). A institucionalização das Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas (MTCI) — conhecidas no Brasil como PICS — por meio da Política Nacional (PNPIC, 2006) representa um profundo desafio político e epistemológico a essa hegemonia. Ela defende a integração de diferentes racionalidades médicas para alcançar a integralidade, princípio fundamental do Sistema Único de Saúde (SUS). Este relato detalha a experiência do autor, primeiro como estudante e depois como tutor, dentro da disciplina de MTCI da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma jornada de transição de uma visão puramente biomédica para uma perspectiva integrativa e crítica sobre saúde, como discutido por Tesser e Sousa (2018).
Este relato de experiência tem como objetivos: 1) analisar o duplo papel de estudante-tutor como lócus pedagógico de reflexão; 2) aprofundar a análise da interface MTCI–Atenção Primária à Saúde (APS) como espaço de prática e resistência; e 3) discutir as estratégias pedagógicas e os desafios epistemológicos na descolonização do currículo médico. Métodos: Este relato baseia-se em uma análise qualitativa da experiência e observações do autor durante debates semanais remotos realizados ao longo de 2023. A metodologia envolveu uma exegese crítica e multidisciplinar de artigos científicos, políticas públicas e textos teóricos sobre MTCI. Esse processo favoreceu uma análise reflexiva das tensões entre diferentes sistemas de conhecimento na formação médica.
Resultados e Discussão: Três eixos analíticos interconectados emergiram, revelando o potencial transformador da disciplina. Descolonização e a Ecologia de Saberes: O curso funciona como um laboratório do que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos chama de “ecologia de saberes”. Esse conceito propõe ir além do “pensamento abissal” — a tendência ocidental de relegar conhecimentos não científicos a um espaço de inexistência. Em vez disso, promove um diálogo onde saberes ancestrais (como o uso de plantas medicinais, xamanismo amazônico) e outras racionalidades médicas são reconhecidos como legítimos, promovendo a “justiça cognitiva” (SANTOS, 2007). Isso confronta diretamente o legado colonial da medicina, que sistematicamente desqualificou e suprimiu práticas tradicionais de cura.
Fortalecimento da Integralidade na Atenção Primária à Saúde: A sinergia entre MTCI e APS é profunda. Enquanto o modelo biomédico fornece ferramentas essenciais para condições agudas, as MTCI oferecem tecnologias de cuidado que ampliam os atributos centrais da APS. Práticas como acupuntura, meditação e toque terapêutico abrem novas possibilidades para o manejo da dor crônica, saúde mental e condições relacionadas ao estresse. Como argumenta Tesser (2009), elas enriquecem o encontro terapêutico, melhoram a relação clínico-paciente e fortalecem a longitudinalidade e a integralidade, respondendo a dimensões do sofrimento humano que frequentemente escapam a um diagnóstico puramente biológico.
Resistência Curricular e o Currículo Oculto: O currículo explícito da disciplina muitas vezes era recebido com resistência por alguns estudantes, fenômeno que pode ser compreendido pelo conceito de “currículo oculto”. A formação médica implicitamente socializa os estudantes a valorizar a medicina hospitalar, especializada e de alta tecnologia, ao mesmo tempo em que frequentemente desvaloriza a APS, a prática generalista e as tecnologias de cuidado de baixo custo (LUZ, 2015). Esse sistema de valores enraizado gera resistência às MTCI, frequentemente percebidas como “não científicas” ou “brandas”. Superar isso exige não apenas apresentar evidências, mas criar espaços pedagógicos para que os estudantes reflitam criticamente sobre a construção histórica e política da “verdade” médica.
A disciplina de MTCI da UFRJ é muito mais do que um complemento; é um espaço crítico de descolonização curricular e de formação de médicos mais reflexivos, críticos e alinhados aos princípios fundantes do SUS. A experiência dupla como estudante e tutor evidencia que integrar essas práticas é uma luta epistemológica contínua, que desafia as próprias bases do colonialismo médico. Para realmente avançar no cuidado integrativo, é imprescindível expandir iniciativas desse tipo e criar mudanças estruturais no currículo médico que normalizem e valorizem uma verdadeira ecologia de saberes em saúde.
Contemporary medical education largely remains anchored in a biomedical paradigm, a model characterized by a mechanistic, fragmented, and disease-centered view of the human body. The sociologist Madel Luz critiques this hegemonic model as one specific "medical rationality" among many, which historically overshadowed other comprehensive systems of knowledge and practice (LUZ, 2005). The institutionalization of Traditional, Complementary, and Integrative Medicine (TCIM) — known as PICS in Brazil — through the National Policy (PNPIC, 2006) represents a profound political and epistemological challenge to this hegemony. It advocates for the integration of different medical rationalities to achieve "integralidade" (comprehensiveness), a core principle of the Brazilian Unified Health System (SUS). This report details the author's experience, first as a student and then as a tutor, within the TCIM discipline at the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ), a journey of transition from a purely biomedical viewpoint to an integrative and critical perspective on health, as discussed by Tesser and Sousa (2018).
This experience report aims to: 1) analyze the dual role of student-tutor as a pedagogical locus of reflection; 2) deepen the analysis of the TCIM-Primary Health Care (PHC) interface as a site of practice and resistance; and 3) discuss the pedagogical strategies and epistemological challenges in decolonizing the medical curriculum. Methods: This report is based on a qualitative analysis of the author's experience and observations during remote weekly debates held throughout 2023. The methodology involved a critical, multidisciplinary exegesis of scientific articles, public policies, and theoretical texts on TCIM. This process fostered a reflective analysis of the tensions between different knowledge systems within medical training.
Results and Discussion: Three interconnected analytical axes emerged, revealing the discipline's transformative potential. Decolonization and the Ecology of Knowledges: The course functions as a laboratory for what the sociologist Boaventura de Sousa Santos calls an "ecology of knowledges." This concept proposes moving beyond "abyssal thinking"—the Western tendency to relegate non-scientific knowledge to a space of non-existence. Instead, it fosters a dialogue where ancestral wisdom (e.g., herbalism, Amazonian shamanism) and other medical rationalities are recognized as legitimate, promoting "cognitive justice" (SANTOS, 2007). This directly confronts the colonial legacy within medicine, which systematically discredited and suppressed traditional healing practices.
Strengthening Integrality in Primary Health Care: The synergy between TCIM and PHC is profound. While the biomedical model provides essential tools for acute conditions, TCIM offers technologies of care that enhance the core attributes of PHC. Practices like acupuncture, meditation, and therapeutic touch provide new avenues for managing chronic pain, mental health, and stress-related conditions. As argued by Tesser (2009), they enrich the therapeutic encounter, improve the clinician-patient relationship, and strengthen longitudinality and comprehensiveness (integralidade), responding to dimensions of human suffering that often elude a purely biological diagnosis.
Curricular Resistance and the Hidden Curriculum: The explicit curriculum of the discipline was often met with resistance from some students, a phenomenon that can be understood through the concept of the "hidden curriculum." Medical training implicitly socializes students to value high-tech, hospital-based, and specialist-driven medicine, while often devaluing PHC, generalist practice, and low-cost care technologies (LUZ, 2015). This ingrained value system creates resistance to TCIM, which is often misperceived as "unscientific" or "soft." Overcoming this requires not just presenting evidence, but creating pedagogical spaces for students to critically reflect on the historical and political construction of medical "truth."
The TCIM discipline at UFRJ is far more than an add-on; it is a critical space for curricular decolonization and for training physicians who are more reflective, critical, and aligned with the founding principles of the SUS. The dual experience as a student and tutor underscores that integrating these practices is an ongoing epistemological struggle that challenges the very foundations of medical colonialism. To truly advance integrative care, it is imperative to expand such initiatives and create structural changes in the medical curriculum that normalize and value a true ecology of health knowledges.