No dia 3 de julho, em meio à 17ª Conferência Nacional de Saúde, a ministra Nísia Trindade anunciou e assinou portaria que retomava o financiamento dos Serviços Residenciais Terapêuticos e dos Centros de Atenção Psicossocial, esteios da promoção das políticas de saúde mental no SUS. O evento se deu ao lado de alguns secretários do ministério da Saúde, como Sonia Barros, chefe do recém-criado Departamento de Saúde Mental, demonstração de que esta dimensão do direito à saúde passa por um salto de qualidade na concepção de políticas públicas.
No entanto, como analisa Fernanda Magano, psicóloga e membro do Conselho Nacional de Saúde, ainda há muito a construir e confrontar, pois neste campo o avanço do conservadorismo no país foi bastante nítido. O biombo ideológico e religioso, com seu discurso moral antidrogas, é frequentemente usado como muleta para interesses econômicos, manifestados nas chamadas Comunidades Terapêuticas. Além disso, o ano será marcado pela 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental, que pode ser um ponto de inflexão histórico na produção de políticas públicas.
“Será um momento importante para reafirmar todas as políticas públicas que defendemos, do cuidado em liberdade. Paralelamente, temos questões que tramitam no CNJ sobre o fim dos hospitais de custódia e tratamento penitenciário, com os custodiados transferidos a tratamentos na rede de saúde. Esse ponto vai ficar candente no debate”, explicou Fernanda. “E há toda a referência do que foi a chamada da conferência, com seus motes ‘Fortalecer e garantir Políticas Públicas: o SUS, o cuidado de saúde mental em liberdade e o respeito aos Direitos Humanos’, que tratará de questões que estamos falando aqui: cuidado em liberdade, direito à cidadania, financiamento para a rede funcionar de fato e a possibilidade da participação social. Trata-se de uma construção de política de saúde mental com universalidade, integralidade e equidade, com impactos para a população e desafios do cuidado psicossocial na pós-pandemia”, completou.
Como ressalta a psicóloga na entrevista, o anúncio de Nísia apenas retoma patamares mínimos de garantia da política pública de saúde mental, dentro dos marcos consagrados pela Reforma Psiquiátrica, que se tornaram lei no Brasil em 2001. E tais marcos ainda sofrem forte resistência, amparada em conceitos moralistas e anticientíficos. Enfrentar as comunidades terapêuticas, e suas manobras políticas e institucionais para se manterem vivas, é condição essencial.
“É nosso calcanhar de Aquiles. Tivemos um processo que herdamos até antes, no plano de enfrentamento ao crack, como se fosse uma pandemia. As distorções e abertura para as comunidades terapêuticas começaram ali. E houve todo um cuidado do departamento de saúde mental em ser bastante criterioso, passar um crivo de avaliação justamente para as comunidades terapêuticas não entrarem na rede de saúde porque não são entes públicos e nem entes de saúde. São entidades privadas. Em tese, se dizem sem fins lucrativos e fazem toda uma distorção, ao alegar fazer o acolhimento de pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas. Isso é uma falácia, são organismos que tentam se inserir na rede de saúde mental e não conseguem, justamente por não cumprirem as determinações das portarias ministeriais.”
Para piorar, o mundo pós-pandemia coloca o tema na ordem do dia, uma vez que o legado de sofrimento causado pela covid, além do luto de tantas pessoas, também ampliou diversas carências. Assim, é importante ter clareza de que não se faz política de saúde mental de forma isolada. Pelo simples fato de que grande parte do sofrimento humano, senão a maior, está diretamente associada ao mundo material.
“Não podemos fazer uma discussão da reconstrução das políticas de saúde mental, do fortalecimento da rede, sem dialogar com as demais políticas, pois corremos o risco de cair numa relação causal do processo de adoecimento, como se só tivesse a ver com questões internas da vivência da pessoa e suas emoções. Mas na verdade é efeito direto das questões socioeconômicas, da qualidade de acesso tanto à rede de saúde como a outros coisas, como alimentação, trabalho, lazer, enfim, a qualidade objetiva da vida. Portanto, falar em acesso a políticas transversais é fundamental para o equilíbrio da saúde mental”, sintetiza.
Para ela, o momento é propício para avançar na compreensão deste caráter transversal da promoção da política de saúde mental, com a valorização real dos usuários do sistema de saúde e também de suas famílias, parte fundamental da questão. Nesse sentido, Fernanda Magano inclusive acredita que tais políticas devem ir além das estruturas e intervenções do Estado.
“Devemos manter a lógica da luta antimanicomial, com participação do usuário e dos familiares nesses percursos formativo e na defesa do sistema como um todo. Muitas vezes abordamos as pautas da saúde e o princípio é da construção de fato de uma relação direta do cuidado, com toda a família, para que inclusive exista suporte para a desinstitucionalização, cuidado em liberdade e uma garantia também de que o cuidado se estenda a essa família, pois sabemos que pessoas com alterações no seu quadro de saúde mental acabam tendo toda uma influência na dinâmica familiar”.
Leia a entrevista completa com Fernanda Magano.
Como receberam a portaria que liberou cerca de R$ 414 milhões para serviços residenciais terapêuticos e CAPS? Qual impacto imagina que terá no sistema público de saúde?
É fundamental a liberação desse recurso porque fazia muito tempo que não havia um investimento direto na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Seu efeito será diluído no tempo, justamente por tantos anos sem investimento, de maneira que vamos sentir paulatinamente. E acho que também se configura uma solução mais imediata, mas que precisa vir amparada com outras questões.
Por exemplo, até um pouco antes do governo de Bolsonaro, já no governo Temer, começou a se modificar uma questão de rubrica financeira de incentivo a municípios de pequeno porte para a abertura de CAPS, que foi sendo retirado. Portanto, foco no atendimento humanizado e investimento na rede de assistência em saúde mental são importantes, mas as medidas recentes vêm quase exclusivamente para tamponar um grande buraco que tinha ficado de herança.
Como observa a questão da abordagem da saúde mental pela atual equipe de governo e seu ministério da Saúde?
Tivemos avanços. O primeiro deles, louvável, é que a saúde mental deixou de ser uma área técnica para se tornar um departamento, o que coloca um peso maior e uma condição de construção da pauta da saúde mental com mais amparo, com mais relevância. Podemos afirmar que isso é efeito do processo eleitoral, de algumas posições públicas de pessoas que defendiam até um ministério de saúde mental, coisas que até fugiam um pouco da orientação que defendemos, mas ajudaram a dar fôlego maior na construção do departamento, que tem uma equipe mais estruturada e toda uma política de atenção e cuidado que está em reconstrução. Ainda não cabem grandes avaliações e parte da política vai se encaminhar com a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental, que acontecerá no final do ano, já com reflexos das proposituras aprovadas na 17ª Conferência Nacional de Saúde, que tocaram nas questões de saúde mental. Mas há muitas situações que precisam ser corrigidas no sentido de retomarmos alguns princípios.
Parte de uma questão que parece pequena, mas a gente considera relevante, é que até também 2015, 2016, tínhamos um boletim da área técnica de saúde mental chamado Saúde Mental em Dados, um instrumento bastante importante e interessante para dar transparência à atuação do poder público. O boletim fazia relação com o matriciamento (conceito de acompanhamento pedagógico-terapêutico de equipes de atenção básica) na saúde mental, na atenção básica, toda a questão da rede de atenção psicossocial estratégica, o número de CAPS abertos por ano, por regiões, os investimentos na política de saúde mental como um todo, a relação com a atenção hospitalar nos leitos de hospitais gerais e toda uma estratégia de desinstitucionalização, que era bastante importante. Isso também foi abandonado e esperamos que seja retomado e valorizado. Também vale acompanhar e avaliar o ritmo de fechamento de leitos psiquiátricos, o que dava bastante noção da realidade desta política e do cuidado em liberdade, que é o nosso princípio.
Depois da pandemia e até por algumas posições da OMS, acredita que deveremos dar mais peso às políticas públicas de saúde mental? Como observa isso no mundo contemporâneo?
É fundamental esse olhar para a saúde mental. Já temos declarações da OMS, da OPAS, o próprio efeito da pandemia e do isolamento social, com uma série de quadros emocionais também relacionados a traços depressivos e aos efeitos do próprio luto. E há também uma avaliação mais geral da OMS do crescimento dos quadros de alteração na saúde mental, não só por causa da pandemia. Portanto, essa deve ser uma questão priorizada na sociedade.
No entanto, não podemos fazer uma discussão da reconstrução das políticas de saúde mental, do fortalecimento da rede, sem dialogar com as demais políticas, pois corremos o risco de cair numa relação causal do processo de adoecimento, como se só tivesse a ver com questões internas da vivência da pessoa e suas emoções. Mas na verdade é efeito direto das questões socioeconômicas, da qualidade de acesso tanto à rede de saúde como a outros coisas, como alimentação, trabalho, lazer, enfim, a qualidade objetiva da vida. Portanto, falar em acesso a políticas transversais é fundamental para o equilíbrio da saúde mental.
Hoje, temos a reconstrução das políticas, com programas se apresentando. Mas de fato precisamos ter cuidado para fazer uma leitura bastante qualificada sobre tudo o que configura a garantia de bem estar neste tema.
Que legados foram deixados pelo período anterior, de confrontação com os preceitos da chamada reforma psiquiátrica e retomada do financiamento das chamadas comunidades terapêuticas?
É nosso calcanhar de Aquiles. Tivemos um processo que herdamos até antes, no plano de enfrentamento ao crack, como se fosse uma pandemia. As distorções e abertura para as comunidades terapêuticas começaram ali. E houve todo um cuidado do departamento de saúde mental em ser bastante criterioso, passar um crivo de avaliação justamente para as comunidades terapêuticas não entrarem na rede de saúde porque não são entes públicos e nem entes de saúde. São entidades privadas. Em tese, se dizem sem fins lucrativos e fazem toda uma distorção, ao alegar fazer o acolhimento de pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas. Isso é uma falácia, são organismos que tentam se inserir na rede de saúde mental e não conseguem, justamente por não cumprirem as determinações das portarias ministeriais. Assim, vão sendo empurrados para o Sistema Único de Assistência Social e toda uma construção de sua legalização na rede de assistência social. Mas na verdade não são equipamentos nem do SUAS e nem do SUS.
É uma herança dos governos passados, que deixaram um departamento de comunidades terapêuticas dentro do ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Isto é um problema que inclusive se evita falar na esfera governamental. Sempre questionamos tanto o departamento de saúde mental como a ministra e trata-se disso como se fosse um problema de outro ministério. Assim, não se aborda e nem se faz o enfrentamento, porque quando começou o discurso de que haveria um departamento no Ministério de Desenvolvimento Social o discurso oficial falava de lidar com aqueles contratos que já existem e precisam ter um fim, tramitar, não poderiam abruptamente romper contratos. E aí quando sai decreto do ministério a característica do departamento é totalmente diferente, com uma continuidade da vinculação com as comunidades terapêuticas, o que vira um escoadouro de recursos financeiros em volumes bastante grandes, também na casa dos milhões. E para organismos que não são nem de saúde e nem de assistência, mas entes privados.
É uma situação bastante grave, não resolvida ainda nas proposituras que saíram da 17ª. Conferência Nacional de Saúde, que se posicionaram pelo fim das comunidades terapêuticas. Nos relatórios das Conferências Estaduais de saúde mental essa questão aparece também bastante forte. Agora, no pleno do Conselho Nacional de Saúde, aprovamos uma resolução que não só coloca uma data para a 5ª Conferência de Saúde Mental, ainda no final deste ano, como aponta a possibilidade de acontecerem conferências livres, com eleição horizontal de delegado justamente para se trazer mais usuários da Rede de Atenção Psicossocial para a Conferência de Saúde Mental.
A 5ª Conferência se realizará com um intervalo de tempo bastante longo em relação à anterior (2010), com a diferença também de que a convocatória já saiu, coisa que o desgoverno anterior não se comprometeu em realizar. Agora, o departamento sob comando de Sônia Barros está comprometido com mudanças. Mas tivemos um lapso de tempo entre as etapas municipais e estaduais muito grande por conta da recusa do governo anterior de realizar a conferência, justamente porque não defendia a política baseada na lei da reforma psiquiátrica e com os princípios da luta antimanicomial, e valorizava as comunidades terapêuticas.
Voltando ao tema inicial, investir em CAPS e SRT é fundamental para mostrar o que o ministério e seus secretários querem construir, que está dentro dos princípios da reforma psiquiátrica. Mas há um jogo de forças sobre a questão das comunidades terapêuticas que não está resolvido. Por exemplo, a 4a Conferência tinha uma chamada intersetorial, envolvimento das políticas de trabalho, da economia solidária, assistência social, projetos de apoio na questão de combate à fome, assistência à rede familiar dos usuários, habitação… Um desenho que em São Paulo, na gestão Haddad na prefeitura, se fazia atavés do programa Braços Abertos.
É uma questão interdisciplinar; uma questão de saúde mas que deve contar outras políticas, sem priorizar a questão policialesca e tratá-la como criminal, coisa que o desgoverno passado fazia. E também teve o efeito da pandemia onde houve decretos que eram intersetoriais do Ministério da Saúde com o Ministério de Desenvolvimento Social inclusive para levar as populações de rua a ficarem internadas em comunidades terapêuticas na perspectiva de dizer que isso era um serviço de proteção a essas populações na relação com a covid, enquanto fazíamos a propositura do uso dos leitos de hotel, a fim de garantir a liberdade de ir e vir, ao invés do que era uma internação quase compulsória nas comunidades terapêuticas.
Falando na 5a Conferência de Saúde Mental, e considerando tudo o que se viveu e produziu na 17a. Conferência Nacional de Saúde, quem em alguma já tocou em pontos aqui debatidos, qual a expectativa depois de tudo que se viveu nos últimos anos e também pela grande distância no tempo em relação à sua última edição? Acredita que se fortalecerá essa transversalidade?
Será um momento importante para reafirmar todas as políticas públicas que defendemos, do cuidado em liberdade. Paralelamente, temos questões que tramitam no CNJ sobre o fim dos hospitais de custódia e tratamento penitenciário, com os custodiados transferidos a tratamentos na rede de saúde. Esse ponto vai ficar candente no debate. E há toda a referência do que foi a chamada da conferência, com seus motes “fortalecer e garantir as políticas públicas, o SUS e o cuidado de saúde mental em liberdade e o respeito aos direitos humanos” , que tratará de questões que estamos falando aqui: cuidado em liberdade, direito à cidadania, financiamento para a rede funcionar de fato e a possibilidade da participação social. Trata-se de uma construção de política de saúde mental com universalidade, integralidade e equidade, com impactos para a população e desafios do cuidado psicossocial na pós-pandemia.
Como dito, os próprios organismos internacionais falam da necessidade de um cuidado mais atento à saúde mental. E uma outra questão importante é que na gestão passada acabou-se com o financiamento dos NASF, que faziam um pouco a questão do matriciamento, o cuidado com a saúde de uma maneira mais ampla, tratavam da saúde da família, com a inclusão dos profissionais escolhidos como psicólogo, terapeuta ocupacional, fisioterapeutas, enfim, uma equipe que tinha essa possibilidade.
Agora, os NASF são retomados na política de Equipes Multiprofissionais (Emultis), uma portaria específica ligada à Secretaria de Atenção Primária. Há um aspecto que nos preocupa na questão porque rompe com o princípio do matriciamento na região. Continua com a questão da inclusão dos vários tipos de profissionais, categorias de médicos, farmacêutico, mas fica muito mais ligada na atenção primária, menos conectada ao território e mais ligada às unidades básicas. Isso tem nos preocupado porque o complemento do acesso à RAPS era uma questão importante na questão dos NASFs.
Quais seriam as abordagens ideias nesse sentido?
Devemos manter a lógica da luta antimanicomial, com participação do usuário e dos familiares nesses percursos formativo e na defesa do sistema como um todo. Muitas vezes abordamos as pautas da saúde e o princípio é da construção de fato de uma relação direta do cuidado, com toda a família, para que inclusive exista suporte para a desinstitucionalização, cuidado em liberdade e uma garantia também de que o cuidado se estenda a essa família, pois sabemos que pessoas com alterações no seu quadro de saúde mental acabam tendo toda uma influência na dinâmica familiar.
O princípio do protagonismo de usuários e familiares dentro da Rede de Atenção Psicossocial é fundamental. A defesa das associações de usuários e familiares, as atividades comunitárias e a questão Centros de Convivência Comunitária (CECCO), onde inclusive perpassa a questão da economia solidária, são importantes demais. Não podemos ficar presos à perspectiva do cuidado ligado apenas às estruturas da saúde. Devemos ampliar essa lógica do cuidado com a família e em outros espaços, com a construção, por exemplo, de mais CECCOs, algo fundamental.
Por Gabriel Brito, entrevista publicada originalmente em OutraSaúde, em 17/7/2023.