Menos antibióticos, mais vacinas

Relatório da OMS faz cálculo inédito: quantos e quais imunizantes são necessários para combater a resistência antimicrobiana. Essa pode ser a resposta para uma

Leitura: 5 minutos

Por Elaine Ruth Fletcher, no Health Policy Watch | Tradução: Gabriela Leite

Uma melhor aplicação de vacinas poderia salvar mais de meio milhão de vidas por ano em todo o mundo, ao se evitar patógenos resistentes a antibióticos. É o que conclui um novo relatório da OMS sobre as estratégias de vacinação contra pneumonia e febre tifoide, bem como os novos imunizantes para tuberculose e pneumonia, que hoje estão em ensaios clínicos.

A longo prazo, o melhor uso das vacinas já existentes, aliado ao desenvolvimento de novas formulações contra 24 patógenos mortais, poderia reduzir a prescrição de antibióticos em 22%. Seriam 2,5 bilhões de doses diárias a menos, apoio importante aos esforços mundiais para enfrentar a resistência antimicrobiana (RAM), segundo o relatório, publicado há alguns dias.

“A resistência antimicrobiana, na realidade, é uma espécie de corrida entre os micróbios ou os patógenos que estão ficando mais espertos para evitar os antimicrobianos, com os antibióticos e os novos medicamentos”, disse Yvan J-F. Hutin, Diretor de Vigilância, Prevenção e Controle da Divisão de RAM da OMS, em uma coletiva de imprensa na quinta-feira, para discutir o relatório.

Além do uso mais criterioso dos medicamentos disponíveis, prevenir que as doenças ocorram é uma estratégia crucial contra a RAM, acrescentou ele. Junto com melhorias no fornecimento de água, no saneamento e na higiene, a vacinação é uma ferramenta importante, mas frequentemente negligenciada, na prevenção da RAM.

“No pilar da prevenção, a vacinação é realmente importante”, disse Hutin. Isso significa “usar as vacinas que temos hoje para aumentar a cobertura, e impulsionar aquelas que estão perto de serem finalizadas, em termos de pesquisa e desenvolvimento, como a de tuberculose. Além de considerar que, para certos patógenos, certos micróbios, ainda não temos a vacina, mas faria muito sentido desenvolvermos”.

Priorizar o desenvolvimento de vacinas

“Sabemos há muitos anos que as vacinas poderiam desempenhar um papel importante no controle ou contribuir com a resistência antimicrobiana, mas até hoje não conseguimos dizer quais vacinas e qual seria o impacto real”, acrescentou Martin Friede, Chefe da equipe de Pesquisa de Produto e Entrega, no Departamento de Imunização, Vacinas e Biológicos da OMS.

“As vacinas têm sido desenvolvidas nos últimos 50 anos com base na priorização… das mortes causadas por aquele patógeno”, acrescentou ele. Mas isso ignora o efeito colateral da resistência aos medicamentos quando as pessoas adoecem e os tratamentos com antibióticos falham. “Este último relatório, no entanto, adiciona o elemento das mortes evitáveis por patógenos resistentes a medicamentos. Agora temos uma nova métrica que podemos incorporar em nossas metodologias de priorização, para dizer que não só devemos prevenir mortes devido ao patógeno, mas também podemos evitar o uso de antibióticos.”

“Agora temos um bom ponto de partida para dizer: estas são as vacinas, estes são os patógenos nos quais teríamos o maior impacto”, na redução da RAM.

Estima-se que 1,13 milhão de mortes ocorram anualmente devido a patógenos resistentes a medicamentos – e mais de cinco milhões de mortes no total são atribuíveis direta ou indiretamente à RAM, de acordo com a pesquisa mais recente da OMS.

O relatório estima que o uso mais amplo de vacinas já disponíveis contra Haemophilus influenzae tipo B (Hib), uma bactéria que causa pneumonia e meningite, bem como vacinas contra a febre tifoide, poderia evitar até 106 mil mortes anualmente associadas ao desenvolvimento de RAM, devido ao uso de antibióticos quando crianças e adultos não vacinados adoecem.

[TABELA]

PatógenoDescrição da vacina e nome abreviadoMortes evitadas pela vacina associadas à RAM em 2019 (IC 95%)DALYs evitados pela vacina associados à RAM em 2019 (IC 95%)
Haemophilus influenzae tipo B (Hib)Uma vacina contra a infecção por Hib aplicada a 74% dos bebês (cobertura de 2019), com eficácia de 5 anos de 93% [Hib_1]11.500 (6.960–13.000)1,0 (0,9–1,2) milhão
Uma vacina contra a infecção por Hib aplicada a 90% dos bebês, com eficácia de 5 anos de 93% [Hib_2]13.000 (11.000–15.000)1,1 (1,0–1,3) milhão
Salmonella TyphiUma vacina contra a infecção por S. Typhi aplicada a 70% dos bebês em países com alta carga de febre tifoide, com eficácia de 15 anos de 85% [STP]34.500 (26.000–44.000)2,8 (2,2–3,6) milhões
Streptococcus pneumoniaeUma vacina específica para sorotipos contra infecção por S. pneumoniae aplicada a 51% dos bebês (cobertura de 2019), com eficácia de 5 anos de 25% para infecções do trato respiratório inferior e 58% para doença pneumocócica invasiva causada por qualquer sorotipo [SP_1]44.500 (37.000–51.500)3,8 (3,3–4,5) milhões
Uma vacina específica para sorotipos contra infecção por S. pneumoniae aplicada a 90% dos bebês, com eficácia de 5 anos de 25% para infecções do trato respiratório inferior e 58% para doença pneumocócica invasiva causada por qualquer sorotipo [SP_2]59.000 (50.000–69.000)5,1 (4,5–6,0) milhões
Uma vacina específica para sorotipos contra infecção por S. pneumoniae aplicada a 90% dos bebês e idosos, com eficácia de 5 anos de 25% para infecções do trato respiratório inferior e 58% para doença pneumocócica invasiva causada por qualquer sorotipo [SP_3]71.500 (62.500–81.500)5,3 (4,7–6,1) milhões
Benefícios do uso mais amplo das vacinas já disponíveis, em termos de mortes, doenças e incapacidades relacionadas à RAM evitadas.

A cada ano, vacinas contra Streptococcus pneumoniae poderiam economizar 33 milhões de doses de antibióticos, se a meta da Agenda de Imunização 2030 de vacinar 90% das crianças do mundo fosse alcançada, assim como adultos mais velhos. Vacinas contra febre tifoide poderiam economizar 45 milhões de doses de antibióticos, se sua introdução fosse acelerada em países de alta carga.

A aplicação mais ampla de novas vacinas contra a malária, agora sendo lançadas, poderia economizar até 25 milhões de doses de antibióticos. Os fármacos, nesse caso, muitas vezes são mal utilizados para tentar tratar a malária, que é causada pelo parasita Plasmodium falciparum e outras cepas relacionadas, e não por uma bactéria.

Vacinas contra tuberculose

Vacinas contra tuberculose poderiam ter o maior impacto assim que as vacinas experimentais que estão agora em ensaios clínicos forem aprovadas e amplamente disponíveis, segundo o relatório. Isso é uma prioridade particular, dado o aumento das formas de tuberculose multirresistente a medicamentos. A administração de 1,2 a 1,9 bilhões de doses de antibióticos poderia ser evitada – uma parte significativa das 11,3 bilhões de doses usadas anualmente contra as doenças abordadas no relatório. Assim, quase 200 mil mortes associadas à RAM poderiam ser evitadas anualmente.

PatógenoDescrição da vacina e nome abreviadoMortes evitadas pela vacina associadas à RAM em 2019 (IC 95%)DALYs evitados pela vacina associados à RAM em 2019 (IC 95%)
Escherichia coli ExPEC extraintestinal (ExPEC)Uma vacina contra a infecção ExPEC de corrente sanguínea aplicada a 70% dos bebês e idosos, com eficácia de 5 anos de 70% [ExPEC_1]15.500 (12.000–20.000)349.000 (285.000–452.000)
Uma vacina contra a infecção ExPEC de corrente sanguínea aplicada a 70% de todas as pessoas em risco de infecção, com eficácia de 5 anos de 70% [ExPEC_2]103.000 (93.500–115.000)2,7 (2,5–2,9) milhões
Mycobacterium tuberculosisUma vacina contra a doença pulmonar por M. tuberculosis aplicada a 70% dos bebês, com eficácia de 10 anos de 80% e reforços subsequentes para garantir proteção vitalícia [TB_1]118.000 (107.000–131.000)4,6 (4,2–5,0) milhões
Uma vacina contra a doença pulmonar por M. tuberculosis aplicada a 70% das crianças aos 10 anos de idade, com eficácia de 10 anos de 50% e reforços subsequentes para garantir proteção vitalícia [TB_2]70.500 (64.000–78.000)2,6 (2,3–2,8) milhões
Neisseria gonorrhoeaeUma vacina contra a infecção por N. gonorrhoeae aplicada a 70% dos adolescentes, com eficácia de 10 anos de 70% [NGb]Não estimado8.917 (6.929–11.500)
Salmonella Paratyphi AUma vacina contra a infecção por S. Paratyphi A aplicada a 70% dos bebês em países com alta carga de febre paratifoide, com eficácia de 5 anos de 70% [SParab]1.463 (853–2.793)128.000 (74.500–224.000)
Mortes, doenças e incapacidades relacionadas à RAM que poderiam ser evitadas com vacinas em estágio avançado de desenvolvimento.

Mais à frente, vacinas para outros patógenos mortais, como Klebsiella pneumoniae, em estágio inicial de desenvolvimento, poderiam salvar várias centenas de milhares de vidas, uma vez que estejam disponíveis.

Vacinas poderiam reduzir os custos econômicos substanciais da RAM

Pelo mundo, os custos hospitalares para o tratamento de patógenos resistentes avaliados no relatório são estimados em US$ 730 bilhões por ano. Se vacinas pudessem ser implantadas contra todos os patógenos avaliados, elas poderiam economizar um terço dos custos hospitalares associados à RAM, concluíram os autores do relatório.

“O custo real de tratar essas infecções é incrivelmente alto, 730 bilhões de dólares a cada ano”, disse Hutin. “E o que descobrimos é que, se colocarmos todas as vacinas que avaliamos juntas, se tivermos um cenário em que possam ser amplamente usadas, atingindo as pessoas que precisam dessas vacinas, poderíamos evitar até um terço desses custos, uma proporção bastante grande que poderia contribuir para a redução da RAM.

Créditos: Ilvy Njiokiktjien/Unicef
Reportagem publicada, originalmente, no site OutraSaúde, em 11/10/2024

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