Resumo Este artigo apresenta um relato de experiência sobre o processo de arquivologia na perspectiva restaurativa, integrativa e sistêmica, com foco nas práticas desenvolvidas entre os anos de 2009 e 2024 nos municípios de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, Bahia. A partir de vivências com os serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com a comunidade indígena de Coroa Vermelha, escolas, universidades e veículos de mídia comunitária, este trabalho destaca os desafios e avanços na sistematização e socialização de registros terapêuticos, pedagógicos e comunitários. São mobilizados referenciais do HumanizaSUS, Programa Saúde na Escola, Terapia Comunitária Integrativa, Práticas Integrativas e Complementares (PICS), Educação Popular em Saúde e o pensamento sistêmico. Os resultados revelam que a memória viva do SUS é fortalecida quando há abertura institucional para linguagens plurais, práticas participativas e produção coletiva de sentidos.
Abstract This article presents an experience report on the process of archiving through a restorative, integrative, and systemic approach, focusing on practices developed between 2009 and 2024 in the municipalities of Porto Seguro and Santa Cruz Cabrália, Bahia. Drawing from experiences in the Psychosocial Care Network (RAPS), the indigenous community of Coroa Vermelha, local schools, universities, and community media outlets, the article highlights the challenges and advances in systematizing and sharing therapeutic, pedagogical, and community records. Theoretical frameworks such as HumanizaSUS, the School Health Program (PSE), Integrative and Complementary Practices (PICS), Popular Health Education, and systemic thinking are applied. The results demonstrate that the living memory of the SUS is strengthened when institutions embrace plural languages, participatory practices, and collective meaning-making.
Introdução
No contexto do SUS, os processos de documentação, memória institucional e compartilhamento de experiências se tornaram elementos-chave para o fortalecimento da democracia sanitária, da transparência e da valorização dos saberes locais. A arquivologia em saúde, quando integrada à abordagem sistêmica, à comunicação restaurativa e à educação popular, permite o resgate de narrativas, a criação de vínculos e o fortalecimento de territórios.
Desafios Iniciais (2009-2013)
Entre os anos de 2009 e 2013, os serviços de saúde mental em Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália enfrentaram grande resistência na adesão aos registros integrados e na aceitação das práticas de registro audiovisual e artístico. O CAPS II de Porto Seguro e outros equipamentos da RAPS resistiam à diversidade de linguagens e à exposição pública das ações.
As dificuldades lembravam as vivências registradas em municípios como Santos (SP), onde experiências exitosas eram invisibilizadas por falta de sistematização e acesso público. A ausência de adesão ao HumanizaSUS e à Política Nacional de Educação Popular em Saúde dificultava o reconhecimento e o fortalecimento das boas práticas.
Virada Pedagógica e Comunicativa
Com a entrada de estagiários da Unesulbahia no CAPS II, de Porto Seguro, a inserção de linguagens expressivas, como teatro, música, desenho e vídeos, passou a ganhar espaço. Pacientes com dons artísticos colaboraram na produção de registros em texto, áudio e vídeo, ampliando a percepção da importância da memória coletiva.
Essa mudança também chegou ao CAPS AD, antes resistente, mas que passou a aderir aos registros em vídeo, especialmente com a entrada das práticas integrativas. A criação do CEJUSC, mais tarde, flexibilizou o processo de consentimento, permitindo autorizações verbais e simplificando os registros em plataformas digitais.
Educação Popular, Juventude e Coroa Vermelha
Entre 2015 e 2016, a comunidade indígena de Coroa Vermelha se destacou pela adesão ao projeto de extensão AvanSUS da Unesulbahia. Jovens indígenas, articulados com a escola estadual, abraçaram a proposta de educação popular e comunicação audiovisual. Foram protagonistas, inicialmente, de uma campanha contra a dengue, registrada em etapas: sensibilização, criação artística freiriana e caminhada final até o Marco do Descobrimento. Esse evento gerou os primeiros conteúdos do Instagram do Npics Brasil.
Matriciamento e Sistematização (2014-2018)
Apesar da implementação municipal do Programa Saúde na Escola em 2012, resistências locais dificultaram a sua operacionalização, especialmente na saúde mental escolar. Em 2015, foi a vigilância epidemiológica, por meio da Educação Popular em Saúde, que viabilizou a abertura para ações mais integradas.
O projeto de matriciamento do enfermeiro Álvaro Sérgio, desenvolvido na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), foi determinante a partir de 2017. O CAPS 1 de Santa Cruz Cabrália, passou a articular com escolas e unidades de saúde, facilitando a implantação das rodas de Terapia Comunitária Integrativa (TCI) e dos Círculos Restaurativos Sistêmicos. Os efeitos foram sentidos de forma mais abrangente a partir de 2018.
Pandemia, Pós-Pandemia e Mídia Comunitária
Durante a pandemia de Covid-19, a articulação com a mídia comunitária se intensificou. O jornal “Cabrália Brilha” foi parceiro na cobertura de ações do Npics Brasil, contribuindo com lives, vídeos e artigos. O uso das redes sociais se intensificou, e a vivência dos princípios da Autossuficiência Brasil permitiram que ações independentes fossem reconhecidas e valorizadas.
As constelações e outras Pics, realizadas pelo Projeto Especial do Departamento de Recursos Humanos, com apoio de membros da direção do jornal, fortaleceu os vínculos institucionais. Filmagens e registros foram realizados com apoio de ex-alunos e colaboradores da escola de formação do Npics, consolidando uma nova cultura de arquivamento e divulgação.
Iniciativas Pioneiras e Arquivos Históricos
É imprescindível destacar o trabalho do professor e fisioterapeuta Paulo Roberto Ramos, que, mesmo sem apoio central da prefeitura, organizou um arquivo pessoal com registros fundamentais da implementação das PICS no CAPS 1 de Santa Cruz Cabrália. Sua atuação pioneira garantiu memória documental sobre as práticas de medicina tradicional chinesa, constelação familiar e Terapia Comunitária Integrativa na região.
Resultados
Houve ampliação significativa na produção de registros audiovisuais como ferramenta terapêutica e comunicativa.
A adesão de comunidades escolares e indígenas fortaleceu a comunicação em saúde por meio de linguagens artísticas.
O envolvimento de universidades, como a Unesulbahia e a UFSB, possibilitou o surgimento de projetos estruturados de matriciamento e extensão.
As práticas integrativas ganharam espaço institucional após sistematização, registro e visibilidade pública, especialmente com a atuação do jornal comunitário e das redes sociais.
A valorização de arquivos pessoais, como os organizados por Paulo Roberto Ramos, demonstrou a importância da memória local e da resistência comunitária.
Discussão
Os achados deste relato reforçam que a arquivologia, quando compreendida além de sua função técnica, assume papel estratégico na consolidação de políticas públicas participativas. O processo de registro audiovisual e artístico, articulado com a educação popular e os princípios do HumanizaSUS, fortaleceu a identidade territorial e o pertencimento comunitário.
A resistência inicial dos equipamentos à diversidade de linguagens revela a necessidade de maior investimento em processos formativos e escuta qualificada. A experiência de Coroa Vermelha exemplifica como a juventude, quando empoderada, pode liderar movimentos de transformação através da comunicação em saúde.
A atuação de profissionais como Álvaro Sérgio Cangussú e Paulo R. Ramos ilustra que a sistematização do cuidado e a guarda de registros não dependem apenas de estruturas institucionais formais, mas do compromisso ético com a memória e com os princípios do SUS.
Por fim, o fortalecimento da mídia comunitária e das redes sociais enquanto plataformas de democratização do cuidado evidencia uma nova etapa do SUS, em que a escuta ativa, o cuidado integral e a memória compartilhada são expressões vivas da saúde como direito e construção coletiva.
Considerações Finais
A experiência relatada evidencia como o processo de arquivologia, quando alinhado às diretrizes do HumanizaSUS, à Educação Popular e às abordagens integrativas e restaurativas, pode fortalecer vínculos, dar visibilidade a práticas bem-sucedidas e fomentar políticas públicas mais inclusivas. O pensamento sistêmico, aqui, não apenas fundamenta intervenções clínicas e pedagógicas, mas também orienta a preservação da memória viva do SUS.
Referências
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Documento arquivado no FamilySearch e validado pela equipe do Npics Brasil. Registros disponíveis mediante autorização.
Forum Jutahy Fonseca, Santa Cruz Cabrália - BA, Brasil
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