A profissão que representa ideia brasileira de saúde

O ofício de sanitarista, ancorado nos pilares da Saúde Coletiva, ganha regulamentação própria

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Estátua em homenagem ao médico sanitarista Sérgio Arouca, localizada em frente ao Castelo Mourisco Fiocruz / Foto de Peter Ilicciev / Acervo Fiocruz Imagens

Lívia Souza em entrevista a Gabriel Brito (Outra Saúde)*

Foi sancionada por Lula, em dezembro, a lei 14.725/23, que regulamenta a profissão de sanitarista. O projeto, apresentado pelo então deputado e ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha, representa não só de um reconhecimento pelo Estado do profissional como também da própria concepção de saúde que funda o SUS.

É isso que a fonoaudióloga Lívia Souza explica em detalhada entrevista ao Outra Saúde. Pós-graduada em Saúde Coletiva, ela própria, dessa forma, é sanitarista. Como membro do Grupo de Trabalho da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), acompanha o processo de implementação desta ocupação agora oficialmente registrada.

“O sanitarista é esse profissional muito implicado com a saúde pública e coletiva no Brasil. É um profissional generalista, interdisciplinar, qualificado, que atua em diversos setores do sistema e dos serviços de saúde. Ele pode atuar na gestão de serviços de saúde ou na pesquisa, tanto do setor público como privado. O sanitarista pode fazer a gestão de hospitais, de unidades de saúde, atuar em diferentes níveis de complexidade e também em diferentes esferas da gestão do sistema de saúde. Ele pode atuar na gestão municipal, estadual, federal, na vigilância sanitária, epidemiológica, ambiental, assim como em diferentes setores da gestão do sistema de saúde, na regulação, no planejamento”, explana.

Para entender o valor do reconhecimento desta profissão para o SUS, precisamos ir às raízes do tema, a fim de compreender o que significa saúde coletiva. Como explica Lívia Souza, é um conceito que vai além da medicina e da visão da saúde como direito de acesso a um serviço. Falar de Saúde Coletiva é visitar os conceitos fundantes do Sistema Único de Saúde, cuja formulação é obra de sanitaristas históricos.

“Quando falamos do conceito ampliado de saúde, remontamos ao debate da 8ª Conferência Nacional de Saúde, lá em 1986, quando o Sérgio Arouca falou que ‘democracia é saúde’. Essa fala supera o debate de saúde compreendida apenas como ausência de doença, ou seja, de um sistema de saúde que se ancora no modelo biomédico e na oferta de serviços de saúde. A partir deste momento, prevalece a compreensão de que saúde é muito mais, que devemos entender seus determinantes. Saúde é acesso e direito a trabalho, educação, renda, transporte, lazer, alimentação adequada, moradia. O sanitarista é formado para compreender saúde a partir deste conceito ampliado.”

Como se pode notar, a ideia de Saúde Coletiva tem um forte pé na sociologia e, inevitavelmente, no pensamento crítico. É uma ampliação da ideia de Saúde Pública, que começou a ser elaborada no final da década de 1970. Não à toa, seus precursores acabaram na mira da ditadura militar. Com a redemocratização, conforme rememora Lívia, o conceito avança e, a partir da 8a Conferência Nacional de Saúde, estabelece as bases do que viria a ser o SUS. Essa ideia, de saúde como direito público, gratuito e universal, é oficializada na promulgação da Constituição de 1988.

Diante de todo este contexto histórico, não é de se estranhar que a regulamentação desta profissão ocorra dentro de um governo federal de recorte progressista e, mais que isso, quando o Ministério da Saúde é comandado por uma socióloga com especialização em Saúde Coletiva.

“O atual governo federal tem um claro alinhamento e reconhecimento do papel e da importância do Sistema Único de Saúde. Mas isso não é necessariamente uma regra. Não há garantia de que todo governo federal será alinhado ao Sistema Único de Saúde ou vai reconhecê-lo. Basta ver o processo dos últimos anos, quando vimos governos gerarem uma série de enfrentamentos em torno do SUS, que viveu toda uma fragilização. Agora, temos um cenário político de reconhecimento da importância do SUS, percebido como fundamental e estratégico para a garantia do direito à saúde”, afirma Lívia Souza.

Como explica Lívia, apesar de agora a função de sanitarista contar com processo formativo próprio, a lei reconhece que a profissão pode ser exercida por profissionais de outras áreas e trajetos. Outro aspecto interessante é que o registro profissional será concedido a partir do próprio Ministério da Saúde, através da criação de órgão competente. Isso quebra o viés corporativo e pode mexer com paradigmas estabelecidos, como os que concedem a autarquias como CFM e OAB o direito de regular o exercício profissional.

“A lei reconhece que a formação deste profissional é de natureza interdisciplinar. Mas não exige um fazer exclusivo nem impõe uma reserva de mercado. Ela reconhece que um profissional da saúde coletiva ou pública pode ter múltiplas formações, desde uma graduação até a pós-graduação em saúde coletiva, além de reconhecer o direito de reconhecimento a quem efetivamente exerceu a função antes de sua regulamentação.”

Leia a entrevista completa.

Como você observou a regulamentação da profissão de sanitarista pelo governo federal, através da sanção da lei  Lei 14.725/23?

Avalio como um reconhecimento histórico da contribuição que esses profissionais dedicados à saúde pública têm dado ao país, desde o século passado. Tivemos sanitaristas históricos, como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Sérgio Arouca, que são precursores da saúde coletiva. Portanto, embora essa atividade profissional já existisse há décadas, o termo sanitarista ganhou muita relevância com a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Assim, o reconhecimento e regulamentação da profissão é resultado de um processo histórico de construção, que passa pelos sanitaristas históricos e também pela implementação do Sistema Único de Saúde. Em 2017, a ocupação sanitarista foi oficialmente incorporada à CBO (Classificação Brasileira de Ocupações) e agora alcançamos o novo patamar ao tornar uma profissão oficialmente regulamentada por lei.

O que é, afinal, ser sanitarista?

O sanitarista é esse profissional muito implicado com a saúde pública e coletiva no Brasil. É um profissional generalista, interdisciplinar, qualificado, que  atua em diversos setores do sistema e dos serviços de saúde. Ele pode atuar na gestão de serviços de saúde ou na pesquisa, tanto do setor público como privado. O sanitarista pode fazer a gestão de hospitais, de unidades de saúde, atuar em diferentes níveis de complexidade e também em diferentes esferas da gestão do sistema de saúde. Ele pode atuar na gestão municipal, estadual, federal, na vigilância sanitária, epidemiológica, ambiental, assim como em diferentes setores da gestão do sistema de saúde, na regulação, no planejamento.

E quem pode ser sanitarista? Que tipo de profissional está habilitado a ser reconhecido como profissional sanitarista?

O próprio texto da lei, num avanço que considero importante, reconhece quem pode ser sanitarista e estabelece quem é o sanitarista. Hoje, no Brasil sanitaristas podem ser aqueles aqueles formados na área de saúde coletiva por graduação, uma recente inovação no Brasil, uma vez que tal graduação surge no país a partir de 2008. Hoje, temos cursos de graduação em saúde coletiva no país inteiro. A profissão pode ser exercida também por pós-graduados na área, seja latu ou strictu sensu.

A lei estabelece que esses três grupos estão aptos à profissão: o formado na graduação em saúde coletiva, o formado pela pós-graduação, oriundo de qualquer profissão, quem fez residência e especialização médica, mestrado e doutorado; por fim, também reconhece a atuação daqueles profissionais que foram formados no exercício profissional direto. A lei incorpora quem tem formação de nível superior e comprova o exercício da atividade profissional por no mínimo cinco anos até a data da lei.

A nova lei significa uma ampliação do rol de ocupações em saúde e, consequentemente, do próprio mercado de trabalho de profissionais de saúde?

Sim. A lei reconhece que a formação deste profissional é de natureza interdisciplinar. Mas não exige um fazer exclusivo nem impõe uma reserva de mercado. Quando a lei atribui a condição de sanitarista, o faz sem prejudicar as competências de outros profissionais, de maneira que gera essa ampliação do escopo de atuação do profissional de saúde, no entanto, sem promover uma reserva de mercado. Ela reconhece que um profissional da saúde coletiva ou pública pode ter múltiplas formações, desde uma graduação até a pós-graduação em saúde coletiva, além de reconhecer o direito de reconhecimento a quem efetivamente exerceu a função antes de sua regulamentação.

Como o Brasil se organiza para formar sanitaristas, teremos investimentos neste sentido?

O Brasil já tem um histórico de formação de sanitaristas pela pós-graduação. Eu, por exemplo, sou uma sanitarista formada pela pós. Fiz graduação de fonoaudiologia e percurso formativo posterior e residência em uma escola de doutorado na área de saúde coletiva. Temos um histórico importante de formação de sanitarista na pós-graduação, mas com a implementação desta lei criamos condições de antecipar a formação desse profissional.

Como disse, os cursos de saúde coletiva foram implantados no Brasil a partir de 2008, tendo muito em conta a perspectiva estratégica do movimento da reforma sanitária para fortalecer o Sistema Único de Saúde. Quando esta formação foi pensada e debatida, nos anos 2000, visou antecipar e aprimorar a formação desse profissional. Agora teremos uma graduação, com 3.200 horas de tempo mínimo de formação, a fim de preparar este profissional generalista, interdisciplinar, cuja formação estará fortemente ancorada nos pilares da saúde coletiva, que tratam de epidemiologia, política de planejamento e gestão e ciências sociais, que consideramos o tripé da saúde coletiva.

Em 2008, começou a implantação dos primeiros cursos de saúde coletiva no Brasil, muito impulsionados pelo programa do governo federal à época, a exemplo do plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). E atualmente temos 24 cursos de bacharelado em saúde coletiva ou saúde pública no Brasil, e que já entregaram ao país a formação de alguns milhares de sanitaristas atuantes no SUS.

Você menciona a reforma sanitária, que organizou e concebeu o SUS, de onde vem os conceitos de saúde coletiva e da própria profissão de sanitarista. Se comparamos com outros lugares e sistemas de saúde do mundo, estamos falando de uma peculiaridade brasileira na formulação da própria ideia de saúde, em um sentido mais amplo?

Sim, pois a profissão de sanitarista surge justamente no bojo do debate da reforma sanitária brasileira. O Brasil é extremamente desigual, país onde se tem uma população muito dependente de políticas públicas, com um cenário epidemiológico extremamente complexo, onde coexistem doenças da modernidade com doenças socialmente determinadas, seculares, como hanseníase e tuberculose, com indicadores ainda muito elevados. Assim, diante deste complexo contexto brasileiro, o movimento da reforma sanitária luta pela implantação de um SUS muito ancorado nas diretrizes de universalidade. Deve ser para todos, deve falar de integralidade do cuidado. Portanto, a própria formulação da profissão de sanitarista é ancorada nesse conceito ampliado de saúde.

Quando falamos do conceito ampliado de saúde, remontamos ao debate da 8ª Conferência Nacional de Saúde, lá em 1986, quando o Sérgio Arouca falou que “democracia é saúde”. Essa fala supera o debate de saúde compreendida apenas como ausência de doença, ou seja, de um sistema de saúde que se ancora no modelo biomédico e na oferta de serviços de saúde. A partir deste momento, prevalece a compreensão de que saúde é muito mais, que devemos entender seus determinantes. Saúde é acesso e direito a trabalho, educação, renda, transporte, lazer, alimentação adequada, moradia. O sanitarista é formado para compreender saúde a partir deste conceito ampliado.

Como membro do GT da Abrasco que acompanha a implementação da lei, o que você pode comentar da ação da esfera pública nesses primeiros meses após a regulamentação da profissão?

A sanção da lei se dá num contexto político que reconhece a importância de políticas públicas, a importância do sistema público de saúde e a consequente importância deste profissional. Temos clareza de que isso só se deu e foi possível em função de um contexto político e internacional favorável. O processo de regulamentação da lei não se encerra com a sanção do presidente Lula, que foi um gesto e um ato importante, porque esse PL podia ter sido vetado.

Apesar da importante finalização e reconhecimento do governo federal, ela não se encerra aí, porque a regulamentação da profissão traz em si uma inovação, e ao mesmo tempo um desafio, porque como reza a lei, que evita a perspectiva corporativista, de impor reserva de mercado, determina as atribuições do sanitarista sem prejudicar a competência de outros profissionais, porque entendemos que se trata de um fazer, por natureza, interprofissional e multiprofissional.

Mas a lei também traz essa inovação e desafio, como disse, porque a emissão do registro profissional e a regulação da atividade de sanitarista acontecerão por meio de órgãos competentes do SUS. Isso é uma inovação nas profissões de saúde, pois temos atribuição da regulação do exercício profissional a partir de conselhos. Nesta lei, mudamos isso, e o exercício profissional será regulado por órgão competente do Sistema Único de Saúde. Isso coloca nova demandas para o SUS, como a necessidade de construir uma agenda de debates ampliados para operacionalizar a proposta de regulação do exercício profissional.

Quer dizer, aqui falamos de uma mudança de paradigmas estabelecidos no ordenamento profissional. É como se fossem quebrados os monopólios corporativos de autarquias que regulam o exercício de uma determinada profissão, como por exemplo CFM e OAB?

Acreditamos que no Brasil contemporâneo e no contexto da saúde coletiva as estratégias de regulação do exercício profissional precisam ser públicas, transparentes, não corporativas. O desafio posto agora é a maneira operacionalizar, e quando eu ressalto a importância do contexto político é porque hoje, embora participemos, como Abrasco, Associação de Bacharéis em Saúde Coletiva, universidades e outros setores, temos uma indução desse processo pelo próprio Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Gestão de Trabalho, Educação e Saúde, hoje conduzida pela Isabela Pinto, docente vinculada à Abrasco, extremamente comprometida com o Sistema Único de Saúde, com o movimento da Saúde Coletiva e a reforma sanitária.

Dias atrás  tivemos workshop na USP comandado pelo professor Fernando Aith, um especialista na área de Direito, para discutir como operacionalizar, quem vai emitir o registro profissional, quem vai regular o exercício profissional, qual órgão, qual setor… Tudo isso são questões que estão sendo debatidas de maneira muito prática, para termos o mais rapidamente possível, sem deixar de garantir um debate muito amplo e uma construção muito coletiva, a operacionalização do que está no texto da lei.

Portanto, como você mesmo fala, a sanção da nova lei está diretamente ligada às diretrizes de saúde pública do atual governo e da própria condução do ministério da Saúde de Nísia Trindade, ela mesma uma socióloga especializada em saúde coletiva?

Sim, porque o atual governo federal tem um claro alinhamento e reconhecimento do papel e da importância do Sistema Único de Saúde. Mas isso não é necessariamente uma regra. Não há garantia de que todo governo federal será alinhado ao Sistema Único de Saúde ou vai reconhecê-lo. Basta ver o processo dos últimos anos, quando vimos governos gerarem uma série de enfrentamentos em torno do SUS, que viveu toda uma fragilização. Agora, temos um cenário político de reconhecimento da importância do SUS, percebido como fundamental e estratégico para a garantia do direito à saúde.

Em um país como o Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes e extremamente desigual, não dá para prescindir do Sistema Único de Saúde. E o atual governo reconhece tal importância. A sanção da lei pelo presidente Lula é um reconhecimento histórico desta profissão e seu valor estratégico para o SUS. Quando discutimos a implantação desse profissional formado pela graduação, é uma discussão estratégica. A formação do sanitarista serve para fortalecer o SUS.

E eu posso dizer que temos visto isso na realidade. Sou professora do curso de graduação de Saúde Coletiva na Universidade Federal de Pernambuco, em campus do interior do estado. E eu posso lhe dizer, não do ponto de vista teórico, mas do ponto de vista concreto, que quando entregamos este aluno aos municípios logo vemos sua qualidade. Temos vários egressos nossos que hoje são preceptores de alunos que fazem estágio. E vemos concretamente a mudança do conjunto de práticas e o quanto fortalecem os processos de gestão.

Portanto, ao apostar na regulamentação da profissão, mais do que isso, ao produzir o debate de como essa regulação será feita, vemos claramente o compromisso da atual gestão federal com o Sistema Único de Saúde.

*Publicada originalmente no site de Outra Saúde, em 01/03/2024.

 

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