Educação, cuidado e justiça restaurativa: uma década de experiências intersetoriais em saúde indígena em Coroa Vermelha (2015–2024)

Resumo

Este relato de experiência apresenta a trajetória de construção de um modelo de cuidado intercultural e sistêmico desenvolvido junto à comunidade Pataxó de Coroa Vermelha, no município de Santa Cruz Cabrália (BA), entre 2015 e 2024. A partir da articulação entre práticas de educação popular em saúde, justiça restaurativa, terapias integrativas e saberes ancestrais, construiu-se um processo participativo envolvendo escolas indígenas, instituições de ensino superior, o CAPS, a Secretaria Municipal de Saúde e o Fórum da Comarca. As ações integraram escuta qualificada, rodas de conversa, oficinas de abordagem Integrativa e sistêmica de conflitos, constelações familiares, imposição de mãos, auriculoterapia, arteterapia e acompanhamento sistêmico. O conceito de Korihé — cuidado integral segundo a cosmologia Pataxó — orientou toda a proposta metodológica, promovendo vínculos de pertencimento, cura emocional e valorização cultural. Os resultados evidenciam o potencial das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) como tecnologias leves e ancestrais de cuidado, reafirmando a importância de modelos colaborativos, interculturais e territorializados no contexto do SUS.

Palavras-chave: Saúde Indígena; Práticas Integrativas; Justiça Restaurativa; Educação Popular; Cuidado Sistêmico; Interculturalidade.

Abstract
This experience report presents the trajectory of building an intercultural and systemic model of care developed with the Pataxó Indigenous community of Coroa Vermelha, located in the municipality of Santa Cruz Cabrália (Bahia, Brazil), between 2015 and 2024. Through the articulation of popular health education practices, restorative justice, integrative therapies, and ancestral knowledge, a participatory process was structured involving Indigenous schools, higher education institutions, the Psychosocial Care Center (CAPS), the Municipal Health Department, and the local Court of Justice. The implemented actions included active listening, talking circles, integrative and systemic conflict mediation workshops, family constellations, laying on of hands, auriculotherapy, art therapy, and systemic follow-up. The concept of Korihé — integral care according to Pataxó cosmology — guided the methodological proposal, fostering belonging, emotional healing, and cultural appreciation. The results demonstrate the potential of Integrative and Complementary Health Practices (PICS) as light and ancestral care technologies, reaffirming the importance of collaborative, intercultural, and territory-based models within the Brazilian Unified Health System (SUS).
Keywords: Indigenous health; integrative practices; restorative justice; popular education; systemic care; interculturality.

1. INTRODUÇÃO
A saúde indígena no Brasil tem passado, nos últimos anos, por um processo de transformação impulsionado por abordagens interculturais, intersetoriais e interinstitucionais. Na região de Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália (BA), a articulação entre o Polo Base de Saúde Indígena da SESAI, Colégio Estadual Indígena Coroa Vermelha, a Prefeitura Municipal e o Fórum da Comarca constituiu uma experiência singular de integração entre saúde, educação, cultura e justiça restaurativa. Essa integração foi intensificada por meio de parcerias com instituições de ensino superior, especialmente a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e as Faculdades Integradas do Extremo Sul da Bahia (UNISULBAHIA), cujas linhas de pesquisa em Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) e Saúde com Arte orientaram metodologias e ações desenvolvidas no território.
Entre os anos de 2015 a 2024, o território indígena pataxó se tornou campo fértil para a implementação de ações inovadoras, inspiradas nas epistemologias do sul, na pedagogia intercultural e nas tecnologias leves de cuidado. A presença dos estagiários de enfermagem da UNISULBAHIA teve papel fundamental nesse processo, com a realização de visitas técnicas, intervenções em educação popular em saúde e ações online voltadas à sensibilização e ao cuidado comunitário. Essas ações ganharam um novo sentido quando houve o encontro entre os estudantes da UNISULBAHIA e os estudantes da UFSB, nos Círculos do Projeto Saúde com Arte, que trabalhou com pacientes e alunos, diversos Saberes no Caps II, de Porto Seguro e em outros eventos. Ali, o projeto “Saúde com Arte” promovia uma vivência formativa na qual a arte, a musicalidade, os círculos de diálogo e a expressão cultural se uniam aos princípios técnico-científicos da saúde coletiva.
Essa convergência gerou um salto qualitativo nas ações junto à comunidade indígena, promovendo não apenas o cuidado em saúde, mas também o fortalecimento da identidade, da autoestima e da visibilidade dos saberes indígenas. A intenção acadêmica sempre foi replicar e multiplicar, da melhor forma possível, do Projeto liderado pela Professora Dra Raquel Siqueira e seus monitores, no município de Santa Cruz Cabrália O termo Korihé, que em Pataxó significa “cuidado”, emergiu nesse contexto como símbolo do cuidado integral, integrativo e culturalmente sensível. Os jovens indígenas passaram a se perceber como agentes de transformação, protagonizando práticas artísticas e terapêuticas e ressignificando experiências de dor por meio da expressão estética e comunitária.
A experiência ganha especial relevância no período entre 2017 e 2019, quando houve um aumento preocupante de casos de automutilação entre adolescentes e jovens indígenas. Esse desafio foi enfrentado com estratégias que integraram reflexoterapia, terapia comunitária integrativa, imposição de mãos, círculos de cultura, danças tradicionais, constelações familiares e práticas restaurativas, com ênfase na Comunicação Não Violenta e na Comunicação Terapêutica da Enfermagem. A liderança do professor Ubiraci Pataxó e o envolvimento direto dos agentes indígenas de saúde foram decisivos para a transformação desse cenário, promovendo a passagem de um discurso de morte para uma cultura do cuidado e da vida.
O presente artigo tem como objetivo sistematizar essa trajetória de integração entre políticas públicas, saberes tradicionais e acadêmicos, tecnologias de cuidado e práticas artísticas, evidenciando a potência do trabalho colaborativo e intercultural como caminho para o fortalecimento da saúde comunitária em territórios indígenas.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1. Educação Popular em Saúde: O Cuidado que Nasce do Diálogo

A experiência em Coroa Vermelha teve início com ações de educação popular em saúde, fundamentadas na pedagogia de Paulo Freire. A educação popular, conforme Freire, propõe uma abordagem dialógica e emancipadora, onde educadores e educandos constroem juntos o conhecimento, promovendo a conscientização crítica e a transformação social . No contexto da saúde indígena, essa abordagem se mostrou eficaz na promoção do autocuidado e na valorização dos saberes tradicionais.

2.2. Justiça Restaurativa e Comunicação Não Violenta: Reconstruindo Vínculos

As práticas de justiça restaurativa, inspiradas nos trabalhos de Howard Zehr e Kay Pranis, foram incorporadas como ferramentas para a resolução de conflitos e fortalecimento dos laços comunitários. A justiça restaurativa enfatiza a reparação dos danos e a restauração das relações, promovendo o diálogo e a responsabilização . Complementarmente, a Comunicação Não Violenta, desenvolvida por Marshall Rosenberg, contribuiu para a melhoria da comunicação interpessoal, facilitando a expressão de sentimentos e necessidades de forma empática .

2.3. Saberes Ancestrais e Interculturalidade: Integrando Conhecimentos

A valorização dos saberes ancestrais indígenas e a promoção da interculturalidade foram fundamentais para a construção de uma atenção à saúde mais sensível e eficaz. A integração dos conhecimentos tradicionais com as práticas de saúde ocidentais permitiu uma abordagem mais holística e respeitosa às especificidades culturais das comunidades indígenas .

2.4. Terapia Comunitária Integrativa: Fortalecendo Redes de Apoio

A Terapia Comunitária Integrativa (TCI), criada por Adalberto de Paula Barreto, foi implementada como uma prática de cuidado coletivo, promovendo espaços de escuta e acolhimento. A TCI baseia-se em cinco pilares: teoria dos sistemas, resiliência, antropologia cultural, pedagogia de Paulo Freire e teoria da comunicação . Essa abordagem contribuiu para o fortalecimento das redes de apoio e para a promoção da saúde mental comunitária.

2.5. Constelações Familiares e Pedagogia Sistêmica: Compreendendo Dinâmicas Familiares

As Constelações Familiares, desenvolvidas por Bert Hellinger, e a Pedagogia Sistêmica foram utilizadas como ferramentas para a compreensão das dinâmicas familiares e comunitárias. Essas abordagens permitiram identificar padrões de comportamento e relações que influenciam a saúde e o bem-estar dos indivíduos, promovendo a harmonização dos sistemas familiares e sociais .

2.6. Enfermagem Integrativa: O Cuidado Técnico e Humanizado

Após a implementação das práticas educativas e terapêuticas, foram introduzidas as intervenções de enfermagem integrativa, incluindo auriculoterapia, reflexoterapia e toque terapêutico. A obra de Mary C. Townsend, “Enfermagem Psiquiátrica: Conceitos de Cuidados”, oferece fundamentos para a prática de enfermagem centrada no paciente, abordando aspectos técnicos e humanísticos do cuidado em saúde mental . Essas intervenções complementaram as ações anteriores, proporcionando um cuidado integral e culturalmente sensível.

3. METODOLOGIA

3.1 Tipo de Estudo

Este estudo configura-se como um relato de experiência, com abordagem qualitativa, descritiva e analítico-reflexiva, realizado no território indígena de Coroa Vermelha, município de Santa Cruz Cabrália (BA), no período de 2021 a 2023. Trata-se de uma narrativa situada e comprometida com os princípios da pesquisa-ação, fundamentada em um fazer coletivo entre instituições acadêmicas, serviços públicos e comunidades tradicionais.

3.2 Contexto Institucional

A experiência relatada foi construída a partir da articulação entre diferentes instituições: a SESAI, a Educação Indígena, a Prefeitura Municipal de Santa Cruz Cabrália (Secretarias de Saúde e Educação), o CEJUSC – Fórum da Comarca, o Núcleo de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde do Brasil (Npics Brasil), a Universidade Federal do Sul da Bahia (GEPPics/UFSB) e a Unesulbahia.

Destaque-se a contribuição da Unesulbahia na oferta de estágio supervisionado em enfermagem, cujos estudantes desempenharam papel fundamental no levantamento de dados, escutas sensíveis, rodas de conversa, educação em saúde e acompanhamento de famílias, na rede de atenção Psicossocial da oitava microrregião. Essa atuação ganhou expressiva qualificação com o envolvimento dos estudantes da UFSB, especialmente através do projeto “Saúde com Arte”, desenvolvido no CAPS II de Porto Seguro, onde a arte e a cultura foram incorporadas ao cuidado.

3.3 Sujeitos da Experiência

Participaram desta vivência: lideranças indígenas, professores, terapeutas, enfermeiros, técnicos de enfermagem, psicólogos, assistentes sociais, estudantes universitários de múltiplas áreas, bem como famílias indígenas em situação de vulnerabilidade social e psicossocial.

A seleção dos participantes se deu de forma espontânea e voluntária, por adesão às práticas e encontros realizados nas aldeias, em unidades de saúde, Colégio Estadual Indígena Coroa Vermelha e outros espaços comunitários. Foram respeitados os princípios da autonomia, da escuta ética e da confidencialidade.

3.4 Etapas do Processo Vivenciado

A experiência foi organizada em cinco fases principais:

1. Aproximação e escuta ativa: diálogos com caciques, pajés e lideranças comunitárias para compreensão das necessidades locais e construção de vínculos de confiança.

2. Educação popular em saúde: realização de rodas de conversa, oficinas, palestras interativas e círculos restaurativos.

3. Promoção do cuidado integrativo: aplicação de terapias como auriculoterapia, toque terapêutico, reflexoterapia e constelações familiares.

4. Integração com saberes acadêmicos e ancestrais: articulação de práticas ocidentais com conhecimentos tradicionais e expressões artísticas indígenas.

5. Acompanhamento, documentação e sistematização: registro de vivências em prontuário clínico sistêmico, vídeos, artigos, cartas reflexivas e relatórios de campo, parte dos quais arquivados na plataforma FamilySearch de modo restrito.

3.5 Instrumentos de Registros e Análise

Os registros foram feitos por meio de anotações em diário de campo, gravações (com consentimento), relatórios institucionais, atas de reunião, prontuário clínico-sistêmico (vinculado ao CEJUSC e ao ambulatório Npics Itinerante) e por meio da produção textual, em áudios ou vídeos, dos próprios estudantes e terapeutas envolvidos.

A análise do material foi feita de forma dialógica e fenomenológica, buscando compreender os significados expressos nas falas, silêncios, expressões artísticas e atitudes. O material foi interpretado à luz de autores como Paulo Freire, Bert Hellinger, Mary C. Townsend, Adalberto Barreto e autores indígenas da área de educação, saúde e cultura.

3.6 Aspectos Éticos

Esta experiência respeitou os princípios éticos da Resolução CNS nº 466/12. Por se tratar de um relato de experiência com base em registros institucionais e observações participantes, não houve necessidade de submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa, conforme diretrizes para esse tipo de estudo. Todos os dados utilizados foram tratados com anonimato e os participantes foram informados previamente sobre o caráter educativo, não-interventivo e não experimental da atuação.

4. Resultados e Discussão

A articulação entre saúde, educação e justiça social em Santa Cruz Cabrália, no período de 2015 a 2024, possibilitou uma tessitura de experiências potentes e transformadoras, especialmente junto à comunidade indígena Pataxó de Coroa Vermelha. O projeto descrito aqui é resultado de uma convergência de saberes técnico-científicos, saberes ancestrais e práticas de educação popular em saúde, alinhados às diretrizes da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) e da Saúde Mental no SUS.

4.1 Educação como Porta de Entrada para o Cuidado

Inicialmente, as ações não se deram pelo cuidado clínico, mas pela escuta e pela formação dialógica. Foram organizadas palestras, rodas de conversa, oficinas de mediação de conflitos e educação popular em saúde com foco em prevenção. Inspiradas nos pressupostos de Paulo Freire (1979) e da pedagogia sistêmica (Bert Hellinger, 2001), essas práticas foram conduzidas com o princípio da horizontalidade, respeitando os saberes da juventude indígena, seus rituais e cosmologias.

Durante o período crítico entre 2017 e 2019, quando ocorreram diversos episódios de automutilação entre adolescentes indígenas, a estratégia de escuta ativa se mostrou decisiva. A presença do Diretor Railson, da Professora Ozélia, da Enfermeira Sirlene e do professor e líder comunitário Ubiraci Pataxó foi fundamental. Por meio de círculos de cuidado e técnicas da Terapia Comunitária Integrativa (Barreto, 2008), os jovens foram convidados a deslocar seu olhar da dor para a construção de novas narrativas de pertencimento.

> “Ao invés de cortar o próprio corpo, os jovens começaram a desenhar sobre ele. Ao invés de escrever mensagens de dor, passaram a compor músicas, poesias e vídeos com seus celulares. A educação em saúde encontrou a alma da cultura.” — Relato de uma professora participante.

4.2 Práticas Integrativas como Cuidado Integral

À medida que os vínculos de confiança foram se estabelecendo, os atendimentos em saúde começaram a incorporar as PICS: reflexoterapia, auriculoterapia, meditação, constelação familiar e imposição de mãos. Cada uma dessas práticas foi realizada de modo transcultural, respeitando os rituais indígenas, mas também integrando técnicas da Medicina Tradicional Chinesa, meditação sistêmica e da enfermagem holística.

Mary C. Townsend (2020) destaca a importância de abordar o ser humano como um campo de energia integral. Essa visão encontra respaldo nos relatos das práticas realizadas, onde o toque terapêutico e a escuta qualificada permitiram intervenções mais profundas e restaurativas. A comunicação terapêutica, conforme descrita por Wright e Leahey (2009), foi central para estabelecer a confiança com os Agentes Indígenas de Saúde (AIS), que também foram alvo de ações de cuidado, autocuidado e formação continuada.

4.3 Saúde com Arte e Epistemologias do Sul

Um dos pontos altos do projeto foi a convergência entre o projeto “Saúde com Arte”, desenvolvido no CAPS II de Porto Seguro com estudantes da UFSB, e os estagiários da Unisulbahia. Esse encontro gerou um ambiente fértil para a produção de saberes híbridos, onde a arte — nas danças awê, nos desenhos, nos vídeos, nas máscaras, nas composições musicais — passou a ser também um dispositivo de cuidado, de ensino e de ciência. O dia em que o jovem Janaron Pataxó, aluno de Ubiraci, realizou rodas de TCI na Unidade Sentinela e no Posto do Centro, levando também um pouco do Korihé e da cultura Pataxó foram, realmente, memoráveis.

Esse fazer artístico e político se conecta às epistemologias do sul (Santos, 2010), que defendem o reconhecimento dos saberes produzidos por povos originários, quilombolas e comunidades tradicionais como formas legítimas de conhecimento e intervenção no mundo. O termo “Korihé”, que em pataxó significa “cuidado”, tornou-se símbolo dessa proposta de atenção integral.

4.4 Justiça Restaurativa e Práticas Sistêmicas

Outro eixo relevante foi a introdução das práticas restaurativas no contexto escolar e comunitário. Os círculos híbridos, facilitados pelo CEJUSC local em parceria com o Npics Brasil e a Secretaria de Saúde, incorporaram a Comunicação Não Violenta (Rosenberg, 2006), a Comunicação Terapêutica da Enfermagem (Balzer, 2018) e as constelações familiares (Hellinger, 2001). Tais práticas mostraram-se eficazes tanto na prevenção da violência quanto na mediação de conflitos familiares e escolares.

A formação dos facilitadores seguiu metodologias desenvolvidas por Adalberto Barreto e as bases da Justiça Restaurativa no Brasil (Wright, 2003; Pranis, 2015), criando um espaço seguro para que crianças, adolescentes e famílias pudessem expressar suas dores, encontrar reconhecimento e construir novas soluções coletivas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A trajetória de integração entre a Colégio Estadual Indígena Coroa Vermelha, o Polo Base da SESAI (CAPS II de Porto Seguro), a Prefeitura Municipal de Santa Cruz Cabrália, o Fórum da Comarca e as instituições de ensino superior (UFSB e Unesubahia) evidenciou-se como um processo de construção coletiva de cuidado sistêmico e intercultural. A experiência mostrou que o cuidado ampliado começa na escuta, na educação popular em saúde e na construção de vínculos de confiança, antes mesmo de qualquer intervenção clínica ou manual.

No período inicial (2015–2017), as rodas de conversa, palestras interativas e oficinas de mediação de conflitos criaram o ambiente propício para que os jovens e famílias indígenas se sentissem acolhidos. Esse cuidado emergente se alinhou aos postulados de Paulo Freire (1978) e à pedagogia sistêmica de Bert Hellinger (2001), reforçando a importância de um processo de empoderamento comunitário, em que “ninguém educa ninguém, mas todos se educam mutuamente” (Freire, 1978, p. 54).

Entre 2017 e 2019, o enfrentamento da onda de automutilação entre adolescentes Pataxó demonstrou a eficácia de estratégias integrativas de prevenção e promoção de saúde mental. A introdução de práticas de justiça restaurativa (Zehr, 2003; Pranis, 2015) e de comunicação não violenta (Rosenberg, 2006) possibilitou a reconstrução de vínculos familiares e comunitários, criando espaços de diálogo em que o sofrimento pôde ser verbalizado sem medo de estigmas. A liderança do professor Ubiraci Pataxó foi determinante para que essas ações fossem culturalmente sensíveis e legitimadas pela própria comunidade.

Quando a confiança já estava estabelecida, foi possível incorporar as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) – como reflexoterapia, auriculoterapia, imposição de mãos e meditação – em consonância com os princípios da Política Nacional de PICS (Ministério da Saúde, 2018) e com a obra de Mary C. Townsend sobre enfermagem psiquiátrica (Townsend, 2020). Esses cuidados manuais, oferecidos por estagiários de enfermagem da Unesulbahia e alunos da UFSB, auxiliaram no tratamento de questões emocionais mais profundas, atuando como tecnologias de reconexão do indivíduo consigo mesmo e com seus ancestrais.

O encontro entre o projeto “Saúde com Arte”, desenvolvido no CAPS II de Porto Seguro, e o trabalho de extensão em Coroa Vermelha gerou um novo patamar de qualificação. A arte deixou de ser mero suporte estético para tornar-se um dispositivo terapêutico e epistemológico, alinhado às epistemologias do Sul (Sousa Santos, 2010), que valorizam os saberes originários como fontes legítimas de conhecimento. As danças tradicionais (awê), as pinturas corporais, os vídeos produzidos pelos próprios jovens e as rodas musicais reforçaram a identidade Pataxó, mobilizando afetos, histórias e espirituais como partes integrantes do cuidado.

Em síntese, esta experiência configura-se como um modelo de cuidado intercultural e interinstitucional. Ela demonstra que políticas públicas de saúde e educação, quando articuladas com os saberes tradicionais e com abordagens sistêmicas, podem gerar transformações profundas em contextos de vulnerabilidade. O conceito de Korihé (cuidado), contemplando corpo, mente, cultura e espiritualidade, revela-se como tecnologia social capaz de alavancar a saúde comunitária e a autonomia dos povos indígenas.

6. PERSPECTIVAS FUTURAS

Para que o modelo consolidado em Coroa Vermelha seja sustentável e replicável, propõem-se as seguintes ações:

1. Formalização de Núcleos Permanentes de Saúde Integrativa Indígena

Estruturar equipes multiprofissionais – com enfermeiros, psicólogos, terapeutas integrativos, educadores populares e agentes indígenas de saúde – capacitadas em PICS, justiça restaurativa e práticas culturais.

Incorporar o conceito de Korihé nos planos municipais de saúde e nos instrumentos de gestão do SUS e da SESAI.

2. Fortalecimento da Educação Popular em Saúde

Implantar um currículo intercultural em saúde nas escolas indígenas, articulando saberes tradicionais, práticas de autocuidado e metodologias participativas (Freire, 1978; Tavares, 2020).

Promover cursos de formação continuada para professores e agentes comunitários, com ênfase em pedagogia sistêmica (Hellinger, 2001) e comunicação terapêutica (Wright & Leahey, 2009).

3. Ampliação das Parcerias Universitárias

Estabelecer acordos de cooperação entre UFSB e Unesulbahia para a criação de linhas de pesquisa e estágios em saúde indígena, PICS, arteterapia e justiça restaurativa.

Incentivar programas de iniciação científica e extensão que envolvam diretamente a comunidade Pataxó, garantindo a transferência de tecnologias leves de cuidado.

4. Garantia de Centros de Documentação e Memória Indígena em Saúde

Criar um repositório físico e digital, em parceria com FamilySearch e com o Arquivo Público Municipal, para sistematizar registros de práticas, roteiros de oficinas, vídeos, fotografias, cartas reflexivas e demais documentos gerados.

Assegurar a devolutiva desses registros à comunidade, respeitando a autonomia e os protocolos de acervo indígena.

5. Reconhecimento e Valorização do Korihé como Tecnologia Social

Apresentar o conceito de Korihé como diretriz em eventos acadêmicos e congressos de saúde pública, mostrando seu potencial de transformação em outros territórios indígenas e tradicionais.

Elaborar propostas de políticas públicas municipais e estaduais que incorporem Korihé como política de promoção de saúde intercultural.

REFERÊNCIAS

Barreto, A. P. (2008). Terapia Comunitária Integrativa: fundamentos e práticas. Salvador: Peirópolis.

Balzer, K. (2018). Comunicação Terapêutica na Enfermagem (2. ed.). São Paulo: Roca.

Freire, P. (1978). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Gomes Pinto, R. S. (2021). Justiça Restaurativa: o paradigma do encontro. Belo Horizonte: Ministério Público de Minas Gerais.

Hellinger, B. (2001). As Ordens do Amor: uma apresentação do movimento das Constelações Familiares. Petrópolis: Vozes.

Menéndez, E. (2005). Antropologia da Saúde: temáticas e perspectivas. São Paulo: Humanitas.

Ministério da Saúde. (2002). Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Brasília: Ministério da Saúde.

Ministério da Saúde. (2018). Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS. Brasília: Ministério da Saúde.

Pranis, K. (2015). Faces of Restorative Justice: International Perspectives. Monsey: Criminal Justice Press.

Rosenberg, M. B. (2006). Comunicação Não Violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora.

Sousa Santos, B. de (2010). A gramática do tempo: para uma nova cultura política. Porto Alegre: Sulina.

Tavares, C. (2020). Pedagogia Intercultural: práticas e reflexões. Salvador: EDUFBA.

Townsend, M. C. (2020). Enfermagem Psiquiátrica: conceitos de cuidados (8. ed.). Porto Alegre: Artmed.

Wright, G. (2003). Justiça Restaurativa: repensando o direito, repensando a justiça. São Paulo: Loyola.

Wright, L. M.; Leahey, M. E. (2009). Enfermeira e a Comunicação em Saúde: Interpersonal Communication in Nursing (5. ed.). St. Louis: Elsevier.

Zehr, H. (2003). Justiça Restaurativa: transformando os sistemas de justiça. Porto Alegre: Sulina.

autor Principal

Diego da Rosa Leal

npicscabralia@gmail.com

Enfermeiro Terapeuta Sistêmico

Coautores

Diego da Rosa Leal (Autor) Sirlene Lopes Raílson Sena Braz Conceição

A prática foi aplicada em

Todo o Brasil

Esta prática está vinculada a

Forum Jutahy Fonseca, Santa Cruz Cabrália - BA, Brasil

Uma organização do tipo

Instituição Pública

Foi cadastrada por

Educação, cuidado e justiça restaurativa: uma década de experiências intersetoriais em saúde indígena em Coroa Vermelha (2015–2024)

Conta vinculada

08 jul 2025

CADASTRO

25 set 2025

ATUALIZAÇÃO

Condição da prática

Concluída

Situação da Prática

Arquivos

TAGS

nenhuma
unblocked games + agar.io