A iniciativa nasceu da necessidade de ampliar o acesso das mulheres cisgênero trabalhadoras do sexo aos serviços de saúde, reconhecendo o estigma, a discriminação e a invisibilidade social que atravessam suas trajetórias. O caráter ambíguo de legalidade e ilegalidade da profissão impacta diretamente o modo como a sociedade enxerga e trata essas mulheres, influenciando também sua relação com as instituições públicas. Em Santo André, apesar de atuarem majoritariamente na região central do município, muitas trabalhadoras permaneciam afastadas da rede de saúde, mesmo quando próximas às unidades, devido ao medo de julgamentos e experiências anteriores de acolhimento insuficiente.
Em 2023, o Núcleo de Prevenção de IST/HIV/Aids realizou um mapeamento territorial que identificou 29 locais de trabalho sexual, incluindo 14 casas situadas na área central. A equipe percorreu esses espaços, reconhecendo casas de funcionamento diurno, boates noturnas e pontos de atendimento, e relacionando cada local às unidades de referência em saúde e assistência social mais próximas. O diagnóstico confirmou uma realidade marcada pela invisibilidade e pela ausência de fluxos estruturados de cuidado, reforçando a urgência de criar estratégias específicas para essa população.
Em 2024, ocorreu a primeira visita a uma casa próxima à Unidade de Saúde responsável pelo projeto, Policlínica Centro, onde atuavam entre 11 e 15 trabalhadoras. A partir dessa aproximação, iniciaram-se visitas semanais, rodas de conversa sobre saúde integral, racismo, machismo, cotidiano do trabalho, prevenção de ISTs e violências, sempre com escuta qualificada. Essa relação resultou na criação de um fluxo de acolhimento facilitado, garantindo que as mulheres tivessem acesso direto à enfermagem sem burocracias ou barreiras adicionais. Em 2025, o trabalho foi ampliado para mais três casas, atendendo a pedidos das próprias trabalhadoras e proprietárias, indicando fortalecimento do vínculo e confiança na equipe.
A unidade passou a atender 15 mulheres de forma contínua, com demandas como saúde ginecológica, saúde mental, contracepção, laqueadura, PrEP, odontologia e vacinação. A implementação da PrEP na unidade, prevista para 2026, está sendo impulsionada pela prática, evidenciando seu impacto na reorganização dos processos de trabalho. O perfil de 39 mulheres atendidas revelou que a maioria se autodeclara preta ou parda, que grande parte desconhecia PrEP e PEP e que muitas relataram aumento no uso de preservativos após as rodas de conversa, apesar das dificuldades inerentes à negociação em contextos de vulnerabilidade econômica.
A experiência ampliou as ações de promoção e prevenção, atualizou o mapeamento dos locais de trabalho sexual, fortaleceu vínculos com os territórios, criou pontos de distribuição de insumos e organizou fluxos diferenciados de acolhimento, garantindo equidade no acesso ao SUS. A aproximação frequente com as trabalhadoras do sexo transformou percepções das próprias equipes de saúde. As visitas revelaram um universo pouco conhecido e ajudaram a desconstruir preconceitos, mostrando que entregar insumos não é suficiente: é necessário escuta, diálogo, continuidade e reconhecimento das múltiplas demandas dessas mulheres, que na maioria das vezes são mães solo e provedoras de suas famílias. Como sintetizou Gabriela Leite, prostituta e socióloga, “prostituta é mulher e não tem doença só da cintura para baixo”. Essa frase se confirmou de forma intensa durante o desenvolvimento do projeto.
Apesar de o termo prostituição derivar de prostituere, “expor publicamente”, a realidade vivida pelas trabalhadoras do sexo em Santo André é marcada por invisibilidade, estigma e marginalização. Entre a hipervisibilidade moral e a invisibilidade como sujeitas de direitos, essas mulheres enfrentam um conjunto de barreiras que dificultam seu acesso aos serviços públicos. O medo do julgamento moral e a desconfiança em relação às instituições contribuem para a baixa procura pelos serviços de saúde, mesmo quando situados próximos aos locais de trabalho.
O mapeamento de 2023 revelou um cenário contraditório: havia dezenas de casas e boates no centro da cidade, mas nenhuma linha de cuidado estruturada que considerasse horários, dinâmicas, contextos de vulnerabilidade e demandas específicas das mulheres. A ausência de fluxos claros, a falta de capacitação das equipes, o desconhecimento sobre prevenção combinada e a inexistência de ações territorializadas aprofundavam desigualdades históricas e restringiam o cuidado integral. Esse contexto evidenciou a necessidade urgente de aproximar a rede de saúde dessas mulheres e de reorganizar práticas e processos de trabalho, de modo a promover equidade e garantir direitos.
Os resultados da experiência têm sido significativos e transformadores. Houve um aumento expressivo na procura espontânea por testagens rápidas, vacinação, exames preventivos e atendimentos na unidade. Das 39 trabalhadoras inicialmente identificadas, 15 passaram a frequentar regularmente a unidade, acessando psicologia, ginecologia, clínica médica, saúde mental, odontologia e serviços especializados como o Centro de Infectologia. Foram entregues aproximadamente 80 caixas de preservativos nesse periodo, além de insumos como luvas, gel lubrificante e autotestes de HIV. O vínculo estabelecido permitiu que três mulheres fossem encaminhadas para acompanhamento em saúde mental, uma iniciasse PrEP em outro serviço do território, outra fosse vinculada ao tratamento de HIV e duas avançassem no processo de laqueadura.
A equipe da unidade passou por formações sobre PrEP, PEP, racismo, sexualidade e enfrentamento ao estigma, com implementação da PrEP prevista para 2026. A experiência favoreceu a reorganização do processo de trabalho da equipe de enfermagem e estimulou maior integração entre atenção primária, CAPS, Centro de Infectologia e Rede de Urgência, agilizando encaminhamentos e favorecendo o cuidado integral. O estigma foi significativamente reduzido: enfermeiras relataram que já não distinguem mais as mulheres pela profissão, mas as reconhecem como sujeitas de direitos e de cuidado. A aproximação entre trabalhadoras da saúde e trabalhadoras do sexo, incomum na prática cotidiana, abriu caminhos para um cuidado mais sensível, solidário e alinhado aos princípios do SUS.
A experiência demonstra que o primeiro passo é realizar um mapeamento sensível e atualizado do território, identificando casas, boates e demais pontos de trabalho sexual, além dos serviços de saúde e assistência do entorno. As visitas de campo devem ser incorporadas como instrumento central de conhecimento e aproximação, pois é no encontro com a realidade vivida pelas trabalhadoras que as equipes desenvolvem habilidades, ampliam seu olhar e constroem estratégias de cuidado adequadas ao território. É fundamental capacitar profissionais para o enfrentamento do estigma e organizar fluxos de acolhimento flexíveis, que garantam acesso direto e respeitoso. Reconhecer que os corpos dessas trabalhadoras não são uma ameaça à saúde coletiva, mas sim corpos vivos, legítimos e que necessitam de cuidado. A prática reforça que promover equidade exige escuta ativa, presença territorial e reconhecimento das múltiplas vulnerabilidades e potências das mulheres trabalhadoras do sexo, valores basilares do SUS.
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