Primeira iniciativa do ministério da Saúde, a retomada do Programa Nacional de Imunização segue em seu esforço de retomar as altas taxas de cobertura vacinal que um dia o Brasil já sustentou. Mas, como mostra o ritmo de imunização, a tarefa está mais difícil do que antes. Há dois motivos principais, explicou a epidemiologista Carla Domingues, ex-coordenadora do PNI, em entrevista do final de 2022 ao Outra Saúde. Um deles é o negacionismo, que ganhou tração no governo Bolsonaro, em especial após a pandemia. Outro, também importante, é o fato de que a atual geração de pais é a primeira completamente vacinada – e que, por isso mesmo, desconhece o significado de doenças como varíola, difteria ou rubéola. A percepção do risco é muito menos clara.
“A situação do Brasil é muito preocupante, porque em algumas vacinas estamos com índice até mais baixo do que em 2022“, alertou ela, em nova entrevista. “Temos de buscar um pacto nacional, com envolvimento de governadores, prefeitos e principalmente o presidente da República. Penso que a ação do ministério da Saúde, ao buscar parcerias no setor privado, ainda é muito tímida. Nesse ritmo, não vamos recuperar as taxas de cobertura vacinal tão cedo”, avalia.
Em sua visão, o ministério da Saúde, apesar de agir na direção correta, ainda é tímido na execução de estratégias de esclarecimento sobre a importância e promoção das vacinações em si. A epidemiologista acredita ser hora de apertar o passo na diversificação de estratégias de vacinação, que não podem apenas repetir antigas campanhas, uma vez que a dinâmica da sociedade mudou.
“Para cada localidade temos de pensar numa estratégia”, ensina. “No município de 2 mil, 3 mil habitantes não tem sentido falar em posto de vacinação funcionando no horário noturno, no final de semana. Possivelmente, ir à casa das pessoas é mais fácil. Já uma cidade como São Paulo, precisa de posto funcionando de noite e postos volantes, que vão no metrô, em um shopping. Portanto, temos de identificar, de acordo com a realidade local, como funcionam os postos de vacinação, como vive a população, quais as dificuldades dessa população em ser vacinada e criar estratégias locais para buscar a elevação da cobertura vacinal”, diz Domingues, que inclui as escolas como parte essencial da estratégia.
De toda forma, não basta só a ação do governo. De acordo com a entrevistada, a ministra Nísia Trindade está correta em convocar a sociedade para um esforço coletivo. Foi com engajamento de diversas instituições e representações da sociedade civil que o Brasil conseguiu elevar sua cobertura vacinal e erradicar doenças, como a poliomielite, que agora ameaçam retornar.
E, diante dos estragos do movimento antivacina, é necessário dar educação científica as pessoas e combater a “hesitação vacinal”, como tem sido chamada por especialistas. Explicar os efeitos históricos positivos da vacinação e também os efeitos de um sistema de saúde sobrecarregado por doenças que poderiam ser evitadas. Pois tomar uma vacina de covid, por exemplo, e evitar uma internação também significa agilizar uma consulta para um tratamento de câncer ou liberar um quarto de UTI para quadros de enfermidades imprevisíveis.
“A vacina, junto com a água potável e os antibióticos, mudou completamente a expectativa de vida da população brasileira. Na década de 1950, tínhamos uma mortalidade em torno de 50 anos. Hoje, nós estamos perto de 80 anos. A vacina tem um papel fundamental nisso. A gente tinha uma mortalidade infantil várias vezes maior que a atual, que está em 12 para cada mil nascidos vivos. Com certeza as vacinas tiveram um papel preponderante no aumento da expectativa de vida da população brasileira e na diminuição da mortalidade infantil. Precisamos comunicar a população”, exemplificou.
Quanto ao movimento negacionista, Carla Domingues concorda com Nísia a respeito de sua responsabilização pelas sequelas geradas por sua desinformação. Isto é, o Brasil precisa criminalizar aqueles que promoveram uma onda de desinformação causadora de muitas mortes.
“É muito sério deixar uma população com insegurança para se vacinar. Criar ou disseminar fake news merece responsabilização. Qualquer pessoa que dissemina e principalmente cria fake news tem de ser responsabilizada, é muito sério. Mais ainda quando se trata de profissionais de saúde. Essas pessoas têm de ser responsabilizadas”.
Leia abaixo a entrevista completa com Carla Domingues
Como tem observado o Programa Nacional de Imunizações em 2023 e a abordagem do novo governo?
Felizmente, vemos um esforço de priorização da vacinação. O programa agora tem um diretor que está tentando resgatar as coberturas vacinais, mas ainda é um trabalho incipiente. Nós precisamos ter uma postura mais firme para resgatar as coberturas. A situação do Brasil é muito preocupante, porque em algumas vacinas estamos com índice até mais baixo do que 2022. Temos de buscar um pacto nacional, com envolvimento de governadores, prefeitos e principalmente o presidente da República. Penso que a ação do ministério da Saúde, ao buscar parcerias no setor privado, ainda é muito tímida. Nesse ritmo, não vamos recuperar as taxas de cobertura vacinal tão cedo.
Como o ministério poderia melhorar sua estratégia de promoção da vacinação?
Em primeiro lugar, precisamos voltar a ter campanhas publicitárias esclarecendo porque existe um programa de vacinação, qual a importância das vacinas e, principalmente, qual o risco de não termos altas coberturas vacinais, em especial nas crianças, que nascem sem nenhuma proteção de qualquer doença. Crianças são o grupo mais vulnerável, com riscos de elevação inclusive da mortalidade infantil no Brasil a partir do possível o retorno de doenças como pólio, difteria, coqueluche, aumento da meningite, rotavírus…
Precisamos mostrar à população porque devemos vacinar as nossas crianças e principalmente completar o esquema vacinal. Não adianta começar o esquema e não terminar. Cada vacina tem um esquema, algumas de duas, três doses, outras tem reforços feitos ao longo da vida, especialmente até os quatro anos de idade. Precisamos de todas as crianças com sua caderneta de vacinação completa.
Temos, hoje, uma geração de pais que não conhece certas doenças justamente porque foi imunizada na infância. Assim, essas doenças deixaram de acontecer no país e começamos a achar que vacina não é importante, já que as doenças não aparecem mais. No entanto, devemos mostrar aos pais e mães que se deixarmos nossas crianças sem vacinas não só a mortalidade infantil pode aumentar como as doenças podem causar sequelas irreversíveis, como cegueira, surdez, problemas de desenvolvimento neurológico, paralisia infantil, coisas que afetam o desenvolvimento das crianças ao longo da vida. Há uma enorme quantidade de doenças se a gente não vacinar nossas crianças.
A comunicação é estratégica e não estamos vendo essa mobilização em torno de falar da importância da vacina, tentar trazer esses pais para os postos de vacinação. Outra questão importante é que há uma dificuldade muito grande de muitos pais que querem levar os seus filhos para vacinar, mas não conseguem comparecer aos postos de saúde porque eles funcionam em horário muito limitado. Nós temos uma geração de pais que estão desempregados ou no mercado informal. Assim, se só tiver o posto de vacinação funcionando de 8 às 11:30 horas e das 14 às 16 horas, esses pais não conseguirão ir ao posto de vacinação.
Temos de criar condições de facilitar a vacinação, seja com postos volantes que facilitem a ida da vacina a essa criança, a esse pai, seja através de horários estendidos, com alguns postos funcionando no horário noturno, no final de semana. Vimos como isso funcionou na campanha de covid. Com horário limitado para vacinação, não vamos recuperar as coberturas vacinais. E hoje temos um Programa de Saúde da Família, muitos municípios têm 100% de cobertura. Ele precisa ser envolvido, ajudar a buscar essas cadernetas de vacinação, identificar quais são as crianças que estão com a caderneta incompleta e criar condições para que sejam vacinadas.
Por fim, devemos envolver a escola. Precisamos que toda criança que frequente a escola esteja com a sua caderneta de vacinação. Podemos ter duas estratégias, seja criando condições para que os profissionais de saúde avaliem a caderneta de vacinação, possam identificar e facilitar o comparecimento da criança ao posto de vacinação ou fazer com que a vacinação chegue ao ambiente escolar. Para cada localidade temos de pensar numa estratégia. No município de 2 mil, 3 mil habitantes não tem sentido falar em posto de vacinação funcionando no horário noturno, no final de semana. Possivelmente, ir à casa das pessoas é mais fácil. Já uma cidade como São Paulo, precisa de posto funcionando de noite e postos volantes, que vão no metrô, em um shopping. Portanto, temos de identificar, de acordo com a realidade local, como funcionam os postos de vacinação, como vive a população, quais as dificuldades dessa população em ser vacinada e criar estratégias locais para buscar a elevação da cobertura vacinal.
O que pensa da afirmação da ministra da Saúde, Nísia Trindade, ao mencionar que a retomada de taxas vacinais desejáveis são também uma responsabilidade da sociedade, que deve fazer um movimento nesse sentido? O que isso revela do contexto brasileiro?
Temos de voltar a ter um pacto nacional. Foi assim que a gente erradicou a pólio, tivemos movimentos de eliminação do sarampo, da rubéola. Precisamos da sociedade civil completamente engajada nesse processo. Na década de 90 tivemos pastorais da criança, Rotary, Lions Clube, diversas instituições da sociedade trabalhando muito juntas, tentando identificar crianças não vacinadas e dando condições para essas crianças serem vacinadas. Precisamos fazer esse papel de mobilização, de comunicação. Não é só achar que campanhas publicitárias caríssimas vão resolver. Muitas vezes o papel de um agente comunitário ou uma ação comunitária tem muito mais importância do que uma comunicação na mídia. Mas para isso devemos envolver a sociedade civil, restabelecer esse contato, identificar pessoas-chave na sociedade para que elas possam ser porta-vozes da vacinação.
São vários mecanismos que a gente precisa restabelecer. Simplesmente falar que a vacina está no posto de saúde não é suficiente para elevar a cobertura vacinal atualmente, em especial agora que vemos grupos antivacinas entrando no país. Já havia esse fenômeno na Europa, nos Estados Unidos, isso não era um problema no Brasil, mas com a covid esses grupos se estabeleceram no Brasil, fazem barulho para que a população fique insegura em buscar a vacinação. Temos de fazer o contraponto. E isso se faz com mobilização da sociedade, um pai tem de se sentir seguro para vacinar o seu filho. É legítimo o pai ter dúvida. As pessoas não conhecem mais algumas doenças. E se ele só escuta na rede social que a vacina vai matar os seus filhos ou vai trazer uma sequela, vai ficar inseguro.
A sociedade esclarecer esse pai sobre a vacina é a melhor forma de proteger a saúde do seu filho. A vacina, junto com a água potável e os antibióticos, mudou completamente a expectativa de vida da população brasileira. Na década de 1950, tínhamos uma mortalidade em torno de 50 anos. Hoje, nós estamos perto de 80 anos. E a vacina tem um papel fundamental nisso. A gente tinha uma mortalidade infantil várias vezes maior que a atual, que está em 12 para cada mil nascidos vivos. Com certeza as vacinas tiveram um papel preponderante no aumento da expectativa de vida da população brasileira e na diminuição da mortalidade infantil. Precisamos comunicar a população. Ela precisa entender que se deixarmos de imunizar teremos problemas.
Temos o SUS no atendimento da população, mas o sistema não tem condições suficientes para atender toda a demanda. De novo o exemplo da covid: quando vimos o aumento de demanda do serviço de saúde, outras doenças deixaram de ser atendidas. Hoje, inclusive há uma demanda reprimida para tratamento de câncer e outras doenças porque os serviços ficaram focados nas doenças imunopreveníveis. Precisamos esclarecer a população. À medida que temos um aumento de incidência dessas doenças, teremos diminuição de atendimento médico para outras doenças. Há uma competição natural pelos serviços de saúde e não podemos ocupar um leito com uma doença que pode ser prevenida com vacinação.
Dessa forma, é cedo para apontar um refluxo na influência social do movimento antivacina?
Eu acho que eles ainda estão ativos, por isso devemos continuar com a conscientização. Nesta sexta, 4/8, houve um evento aqui em Brasília para discutir essas questões. O Instituto de Pesquisa e Ciência junto com a Sociedade de Pediatria estão fazendo debates e encontros para debater a questão da hesitação vacinal. Isso é um problema no Brasil. Esses grupos antivacina estão se fortalecendo e a gente precisa falar isso com a sociedade científica, envolver a sociedade de pediatria, de infectologia, da população idosa.
Temos que trabalhar para que o profissional de saúde se sinta seguro de falar em vacinação, não só o pediatra. Qualquer profissional de saúde quando tenha diante de si um paciente, em algum momento da vida, vai ter de tomar alguma vacina. Assim, precisa conhecer o calendário de vacinação, precisa estar seguro de recomendar que aquelas vacinas são eficazes, que os eventos adversos são baixíssimos em relação à gravidade da doença. Mas se esse profissional na saúde não tem segurança para recomendar quando a população pergunta ou sabe esclarecer, essa insegurança faz com que a população também evite a vacinação.
Portanto, esse é o movimento que precisamos fazer para que os grupos antivacina não se fortaleçam. Porque trabalhamos com a verdade, com evidência científica. E esses grupos trabalham com a mentira e dão tom de verdade. Isso deixa a pessoa insegura na hora que recebe uma fake news, principalmente nas redes sociais. Eles não têm compromisso com a responsabilidade social, com a ética. E se colocam de forma muito enfática, se a pessoa não tem conhecimento fica realmente muito insegura. Por isso também precisamos envolver as redes sociais e trazer informações adequadas e esclarecedoras para enfrentar as fake news.
Concorda com a ministra quando ela fala em responsabilização e punição de setores que compactuaram com este negacionismo durante a pandemia?
Sim. Qualquer pessoa que dissemina e principalmente cria fake news tem de ser responsabilizada, é muito sério. Mais ainda quando se trata de profissionais de saúde. Essas pessoas têm de ser responsabilizadas. Quando somos porta-voz, temos compromisso de informar, temos de trabalhar com evidência científica, ter certeza do que falamos. Quem dissemina uma fake news está sendo irresponsável a ponto colocar em risco a vida das pessoas. Porque uma pessoa que se sente insegura e com medo de se vacinar ou vacinar seu filho pode adoecer adiante, pode ser responsável por transmitir a doença para outras pessoas que não podem ser vacinadas, que estão fazendo tratamentos de outras doenças, como câncer.
Crianças de um ano ou menos de idade só ficam protegidas se quem está em volta dela está imunizado. Se eu deixo de vacinar as pessoas, as crianças acima de um ano de idade ou seus pais eu estou contribuindo para que essa criança menor de um ano de idade adoeça. É muito sério deixar uma população insegura de se vacinar. Criar ou disseminar fake news merece responsabilização.
Por isso volto a enfatizar que o ministério da Saúde precisa falar mais da importância da vacinação. Ainda acho que essa comunicação está muito tímida. Vemos todo o movimento de trabalhar para resgatar a vacinação, mas ainda precisamos ser mais enfáticos, ter uma comunicação mais efetiva e o ministério tem de liderar essa comunicação.
Por Gabriel Brito, entrevista publicada originalmente no site Outra Saúde, em 7/8/23